Afinal por cá também se pensou... (Portugal)

António Rego Chaves

Editado o volume correspondente ao século XIX, está concluída a publicação da «História do Pensamento Filosófico Português». Trata-se de uma ousada iniciativa do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, neste país onde, como dizia Cunha Seixas (1836-1895), «escrever-se filosofia é quase uma inutilidade». A obra, dirigida por Pedro Calafate, é composta por cinco volumes (sete tomos), com os títulos «Idade Média» (incluindo o longo período anterior à formação do Estado), «Renascimento e Contra-Reforma», «As Luzes», «O Século XIX» e «O Século XX», vindo preencher uma lacuna há «décadas de negligência e descaso» sentida pelos estudiosos da nossa cultura. Estes pareciam condenados a tomar a «História da Filosofia em Portugal», de Lopes Praça – datada de 1868 – como incontornável referência bibliográfica, pelo simples facto de ela ser … a única existente!

O próprio autor do texto oitocentista reconhecia as limitações do seu trabalho: «Não nos levem a mal o título do livro. Chamamos-lhe o que desejávamos que ele fosse e não o que realmente é.» Na verdade, Lopes Praça, como salientou Pinharanda Gomes, fixou o começo da sua investigação no princípio da Monarquia, ignorando todo o pensamento anterior à fundação da nacionalidade, ou seja, a patrística bracarense, a filosofia árabe e a cabala hebraica, ao mesmo tempo que não prestou qualquer atenção aos pensadores místicos do século XVI, aos reformistas e contra-reformistas e ao experimentalismo realista do período dos Descobrimentos. Com 24 anos e dotado de um espírito «pragmático», arrepiou caminho e enveredou pela mais rendível senda do Direito Constitucional, não chegando a escrever o segundo volume que prometera e pondo fim ao seu empreendimento expondo as ideias de Pinheiro Ferreira, que falecera em 1846.

Note-se, no entanto, que há méritos a apontar a esta obra pioneira, o menor dos quais não será ter o jovem historiador chamado a atenção para o lastimável papel desempenhado pelo índice expurgatório da Inquisição no marasmo aristotélico-escolástico da nossa filosofia, ao colocar durante séculos fora do alcance da maioria dos portugueses as «ideias subversivas» vindas de Inglaterra, Alemanha ou França. Lopes Praça cita o filósofo alemão do direito Frederico Jugler (1718-1791), que afirmara: «Os lusitanos, por causa de não terem liberdade de pensar, a custo tocam as disciplinas filosóficas», mas não se esquece de acrescentar que a Censura sobreviveu à Inquisição, pois o Marquês de Pombal, se destruiu a Ordem dos Jesuítas, fez questão de conservar o Santo Ofício e de criar a Real Mesa Censória…

Adiante e passando sem comentários sobre quase cinco decénios de atropelos à liberdade de expressão em pleno século XX. Sublinha Pedro Calafate, na apresentação do trabalho de equipa pelo qual é o principal responsável, que «uma dimensão muito considerável do pensamento filosófico português não radica exclusivamente em textos que numa primeira abordagem poderíamos considerar como filosóficos, impondo-se, com especial relevo, uma abertura à literatura, à poesia e à espiritualidade». E exemplifica: «o platonismo em Luís de Camões, o pedagogismo activo de Verney e de António Sérgio, a poesia de Antero e Pascoaes, o romance lírico de Vergílio Ferreira, ou ainda a vertente existencial da obra de Raul Brandão», o publicismo de Sampaio Bruno, Raul Proença, Leonardo Coimbra e António Sérgio, «onde a filosofia “desce” aos jornais e às revistas culturais». Saliente-se que, segundo o director da obra agora concluída, os textos inseridos nestas quase quatro mil páginas visam um público que «não é apenas constituído por um universo restrito de especialistas, tentando assim corresponder ao interesse pela filosofia que tem vindo a notar-se, de forma crescente, e às vezes até surpreendente, na sociedade portuguesa contemporânea». Será assim? Assim seja.

O volume dedicado ao século XIX, com dois tomos, confere o devido destaque ao grande debate oitocentista entre cientismo e metafísica, por um lado, e, por outro, ao pensamento político e jurídico. Na primeira parte do primeiro tomo, «A Revitalização da Metafísica», Amorim Viana, Antero de Quental, Cunha Seixas, Domingos Tarrozo, Oliveira Martins, Ferreira-Deusdado, Guerra Junqueiro e Sampaio Bruno são distinguidos com capítulos que lhes são integralmente consagrados. A segunda parte versa «Os Ideais da Positividade», tratando a terceira de «A Renascença Católica e a Renovação da Escolástica». Quanto ao segundo tomo, inclui a quarta e quinta partes, intituladas, respectivamente, «A Reflexão sobre a Ciência, a Educação e o Direito» e «O Pensamento Social e Político».

O debate entre cientismo e metafísica, sob o impulso de Silvestre Pinheiro Ferreira, domina o século. Só depois se erguerão Amorim Viana, Antero de Quental e Sampaio Bruno. Ao passo que Pinheiro Ferreira se inscreve ainda, «com total ortodoxia, no campo do teísmo cristão» (António Braz Teixeira), o «teólogo laico» Amorim Viana – assim lhe chamou Sant’Anna Dionísio –, assume-se como deísta e roça o agnosticismo, sendo a sua obra «Defesa do Racionalismo e Análise da Fé», vinda a lume em 1866, colocada de imediato no «Index Librorum Proibitorum». Se o pensamento heterodoxo de Amorim Viana arranca de Kant e Proudhon, Antero de Quental, ainda que bom conhecedor das filosofias do professor de Königsberg e do socialista utópico francês, declara o hegelianismo o ponto de partida das suas especulações e acentua ter sido dentro dele que se deu a sua evolução intelectual, mas acabará por o considerar «a última grande explosão do dogmatismo na filosofia moderna». A «náusea da realidade» apoderar-se-á do seu génio de poeta ferido pelo enigma ontológico do ser – até ao suicídio em Angra do Heroísmo. Sampaio Bruno chamará a si o direito de se afirmar, a um tempo, republicano e adversário do cientismo: «Nós não partimos da metafísica para a positividade, mas, pelo contrário, da positividade para a metafísica». Chegou a hora de (re)escutarmos com toda a atenção estas meditações e estes gritos, sempre tão altivos, angustiados e bem portugueses quanto isolados, corajosos e muito inequivocamente europeus.

«História do Pensamento Filosófico Português – O Século XIX», direcção de Pedro Calafate, coordenação de Manuel Cândido Pimentel, Editorial Caminho, 2004, 587+434 páginas