Etty Hillesum/«Diário»

«Para ler de joelhos»

António Rego Chaves

Haverá muitas formas de focar o «Diário» de Etty Hillesum (1914-1943), uma jovem judia holandesa vítima mortal da barbárie de Auschwitz. A mais óbvia será o ponto de vista político (nazismo, campos de concentração, não-resistência, etc.); a seguir poderá chegar a abordagem psiquiátrica (depressão, fuga à realidade, refúgio num mundo imaginado à medida da fantasia e do desejo); enfim, a óptica teológica adequada ao estudo do misticismo na primeira metade do século XX, como o de Simone Weil ou Edith Stein. Digamo-lo desde já: só as duas últimas atitudes nos parecem justificáveis.

Em 14 de Junho de 1941, numa Amesterdão ocupada pelos nazis, ela escreve: «Mais prisões outra vez, terror, campos de concentração, o levar indiscriminadamente pais, irmãs, irmãos. Uma pessoa procura o sentido da vida e pergunta-se se ela na realidade ainda tem sentido. Mas este é um assunto que cada um deve decidir consigo e com Deus. E talvez cada vida tenha o seu próprio sentido e dure uma vida inteira para o encontrar. Pelo menos de momento perdi toda a relação com as coisas e a vida, e tenho a sensação de que tudo é casual e que interiormente uma pessoa se deve desligar dos outros e de tudo. Parece tudo tão ameaçador e sinistro, e depois a grande impotência.»

A 26 de Agosto, dir-se-ia alhear-se de tudo o que a rodeia: «Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo. Imagino que há pessoas que rezam com os olhos apontados ao céu. Essas procuram Deus fora de si. Há igualmente pessoas que curvam profundamente a cabeça e a escondem nas mãos, penso que elas procuram Deus dentro de si.» E Deus vai continuando a salpicar o texto – como se fosse apenas o reflexo dos instáveis estados de espírito da jovem mística –, até que se anuncia, em 3 de Dezembro, o grande momento de interioridade que irá, porventura, determinar as suas escolhas em relação ao universo da «comunidade» judaica: «Ajoelho-me outra vez tapando a cara com as mãos, e peço: ‘Ó Deus, deixa-me ser assimilada por um grande sentimento uno. Permite-me que eu faça as milhentas coisas quotidianas com amor, mas faz com que cada pequeno acto nasça de um grande sentimento central de disponibilidade e de amor.’»

Não lhe bastará «a coragem de pronunciar o nome de Deus». Ingressará em Julho de 1942 no Conselho Judaico, «esse estranho órgão mediador». Desprezará os seus membros, à sua maneira colaboracionistas, que visam – aliás sem êxito – salvar a pele. E, a esses oportunistas, não os poupará: «Claro que nunca poderá ser desculpado que uma parte dos judeus ajude a transportar [para os campos de concentração e extermínio] a outra grande maioria. A História terá ainda um dia de dar o seu parecer sobre isto.»

Quase parece tornar-se indiferente ao destino individual que a espera: «Quando uma pessoa leva uma vida interior, talvez nem haja tanta diferença entre estar dentro ou fora dos muros de um campo.» Mas continua a dizer-se, matraqueando um (desesperado?) refrão: «A vida é muito bela, apesar de tudo é muito bela.» (…) «Bela e cheia de sentido. De minuto a minuto.» (…) «Acho que a vida é muito bela, que vale a pena ser vivida, e que tem sentido apesar de tudo.» Está, no entanto, a 18 de Maio de 1942, consciente da cruel realidade que a cerca, a si, à sua família, ao homem que ama de corpo e alma – e reza: «As ameaças exteriores aumentam cada vez mais, o terror cresce com o passar dos dias. Eu uso a oração como um escuro muro protector, na oração retiro-me como se estivesse na cela de um convento e, depois, saio cá para fora mais ‘una’ e fortalecida e mais completa. Recolher-me na cela fechada da oração torna-se para mim uma realidade cada vez maior e também uma necessidade. Esta concentração interior ergue muros altos em meu redor, dentro dos quais novamente me reencontro, formo um todo, fora do alcance de todas as dispersões.» Uma semana depois, porém, já vagueia pelo cais de Amesterdão, fala de um futuro comum com o homem amado, bebe com ele um Chianti branco, projecta a sua realização como escritora. A 12 de Junho, anota: «E parece que é agora que os judeus deixam de poder ir aos lugares de hortaliças; e que têm de entregar as bicicletas; e não podem mais andar de eléctrico; e que têm de recolher a partir das oito da noite.» Mas pensa que «nunca são as coisas externas, é sempre esta sensação cá por dentro, depressão, incerteza, ou o que quer que seja, que dá às coisas exteriores uma aparência triste ou ameaçadora.» Estaria louca? Ou será que «Deus se encontra escondido para muitos», mas que, a quem o consegue descobrir [ou inventar] dentro de si, nem mesmo os SS «podem fazer nada», «realmente nada»? Como Etty «agarrados» à Bíblia, a Santo Agostinho, a Rilke, a Dostoievski, a Tolstoi, poderíamos nós, a caminho de Auschwitz, «manter os nossos corpos e as nossas almas perfumados no meio de tanto cheiro a podre»? Ou pensar: «Creio em Deus, mesmo quando daqui a pouco os piolhos me devorarem na Polónia?» Ou sentenciar: «Uma pessoa tem de aceitar a morte [decretada pelos nazis] como fazendo parte da vida»?

A mística dirige-se a Deus: «Tu não nos podes ajudar, nós é que temos de te ajudar, e, ajudando-te, ajudamo-nos a nós próprios.» Explica-se, a 15 de Julho, sobre as suas orações: «Quando rezo, nunca rezo por mim, rezo sempre por outros ou mantenho um diálogo idiota, infantil ou extremamente sério com o que há de mais profundo em mim, a que chamo Deus para facilitar.» Sublinhamos, sem comentário possível: «A que chamo Deus para facilitar.» E relevamos o que registará oito dias depois: «O único gesto de dignidade humana que ainda nos resta neste tempo: ajoelhar perante Deus.»

Partirá como voluntária para Westerbork, na «sua» Holanda, onde os judeus eram obrigados a trabalhar e a viver em barracas antes de serem enviados para campos de concentração e extermínio. Aí quer viver o «inferno dos outros», sendo «o coração pensante» do campo de concentração. Sentir-se-á «descansar dentro de si». E a esse «si», a esse lugar «mais profundo e precioso» de si própria, irá, talvez até à morte, chamar «Deus». Mas basta: há neste «Diário» demasiadas frases «para ler de joelhos».

Etty Hillesum, «Diário», Assírio & Alvim, 2008, 341 páginas