Grécia Antiga: do «milagre» ao pesadelo (André Bonnard)

António Rego Chaves

Palavras de André Bonnard: «Esta obra de vulgarização não pretende ser uma história completa da civilização grega. Não é mais do que uma vista de perspectiva, ilustrada por alguns casos exemplares. O autor quis simplesmente esclarecer o movimento ascendente, depois […] o desabrochar, seguido de rápido declínio, da civilização grega, e tentar explicar as suas causas.» Diga-se, em abono do notável helenista suíço: este é um dos mais belos livros que podemos ler sobre a Grécia Antiga. Intolerável é que a dispendiosa reedição portuguesa (40 euros) abrigue milhentos erros e gralhas, entre os quais a versão para a nossa língua de nomes próprios gregos. E aceita-se mal a ausência de índices onomástico e ideográfico, indispensáveis a todos os estudiosos.

O autor aborda com brilho três períodos da cultura helénica: «Da Ilíada ao Pártenon» (sic, não Parténon), «De Antígona a Sócrates» e «De Eurípides (sic, não Eurípedes) a Alexandria». Perguntamo-nos: se é que houve um «milagre grego», não terá também existido – e simultaneamente – um «pesadelo grego»? Expliquemo-nos.

Caminhamos, guiados pela hábil mão de Bonnard, e não podemos senão maravilhar-nos. Maravilhamo-nos com a poesia do Homero, Arquíloco, Safo, Píndaro, Apolónio de Rodes e Teócrito, a política de Sólon, Péricles e Demóstenes, o teatro de Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes, o romance de Longus, a escultura de Míron, Fídias e Policleto, a filosofia de Tales, Demócrito, Pitágoras, Sócrates, Platão, Aristóteles e Epicuro, a história de Heródoto e Tucídides, a medicina de Hipócrates, Herófilo e Erasístrato, a engenharia de Arquimedes e Héron, a astronomia de Aristarco de Samos, a geografia de Píteas e Eratóstenes. Mas há uma mancha, uma constante, indisfarçável e indelével mancha, que perverte toda a nossa caminhada. Seu nome é escravatura.

Bonnard não se cansa de repetir, doa a quem doer, que nada do que tanto admiramos na Grécia Antiga teria sido viável sem a escravatura. Ouçamo-lo com atenção, pois não é essa a lição habitual que colhemos nos liceus, nas universidades, nos livros e, por maioria de razão, nas balofas declarações dos «enrocons», sempre dispostos a tecer etéreas loas ao que chamam «a pátria da democracia». Escreve o nosso autor: «A democracia – como sabemos – não é outra coisa senão a igualdade entre todos os ‘cidadãos’. Muito, e muito pouco. Assim, em Atenas, admite-se que no século V – embora tais cálculos sejam difíceis e incertos – havia à roda de 130 mil cidadãos (contando as mulheres e os filhos, o que está muito longe de fazer 130 mil eleitores!), 70 mil estrangeiros domiciliados, gregos vindos de outras cidades e instalados de modo duradoiro em Atenas, mas sem usufruir dos direitos políticos, e finalmente 200 mil escravos [e não mil, como por lamentável lapso se imprime na edição portuguesa]. Quer dizer, também, que a democracia ateniense, muito igualitária no que se refere aos direitos políticos dos cidadãos, apenas vivia e se conservava, em grande parte, graças ao trabalho dos escravos. A escravatura é a forma primitiva daquilo que hoje se chama ‘a exploração do homem pelo homem’. É também a mais dura. A sociedade da Idade Média não conhece já a escravatura, mas a servidão. Quanto à sociedade moderna [1954], tem o salariato, sem esquecer a exploração colonial.» (…) «A civilização é coisa muito complexa e é prudente não esquecer, quando se fala da civilização grega, que ela é, não obstante os seus méritos, [a de] uma sociedade esclavagista. Talvez isso nos deva levar a pensar que uma civilização que não é feita para a totalidade dos homens não merece esse nome, ou está sempre em perigo de barbárie.»

Mas há mais: a escravatura ameaçava a sobrevivência da própria sociedade. De facto, «se a ausência de meios de produção foi uma das causas da escravatura, a facilidade de arranjar mão-de-obra servil em quantidade suficiente teve [tiveram na edição portuguesa] também como consequência não ter procurado desenvolver as invenções mecânicas. Porque se dispunha de escravos, elas nunca se desenvolveram. Inversamente, porque não havia máquinas, era preciso absolutamente manter a escravatura. Mas este círculo vicioso ainda é mais deplorável do que parece. A existência da escravatura não se limitava a tornar inútil a invenção de meios mecânicos de produção: a escravatura tinha tendência a travar as investigações científicas que teriam permitido a criação de máquinas. Isto equivale a dizer que a escravatura era obstáculo ao próprio desenvolvimento da ciência.»

Constitui hoje para nós um verdadeiro escândalo que os mais prestigiados intelectuais da Antiguidade, longe de condenarem a escravatura, se tenham permitido justificá-la. Aristóteles, esforçando-se por demonstrar que a existência de escravos é condição «sine qua non» da existência de homens livres, chega a afirmar que a guerra – aliás apenas uma das várias formas de fazer escravos – é «uma caça que permite adquirir homens que, nascidos para obedecer, recusam submeter-se». Só com Eurípides os primeiros protestos se fazem ouvir: o grande poeta trágico recusa fazer a distinção entre a nobreza do homem livre e a pretensa baixeza da alma do escravo. Proclama: «Muitos escravos trazem este nome que os desonra, mas a sua alma é mais livre que a dos homens livres.» E Alcídamas, um discípulo do sofista Górgias, lança este grito de revolta, quase solitário: «Deus criou-nos livres a todos; a natureza não faz escravos.»

Conclui Bonnard: «Assim se preparava, de muito longe e de muito baixo, a revolução cristã. Foi porque o cristianismo oferecia a salvação de todos os homens, pobres e ricos, escravos ou livres, todos iguais aos olhos de Deus, que ele venceu e minou, por dentro, na sua base esclavagista, a sociedade antiga. Foi entre os pobres, entre os escravos, e também entre as mulheres, que ele primeiro se espalhou.» Pena que o primitivo «cristianismo ideal» tenha perdido o vigor e descambado na sua grotesca caricatura, o acomodatício e pragmático «cristianismo real» de quase dois milénios…

André Bonnard, «A Civilização Grega», Edições 70, 2007, 760 páginas. Tradução de José Saramago