Alan Riding (A vida cultural na Paris ocupada pelos nazis)

Os mártires e os historiadores

António Rego Chaves

Poucos dias depois de invadida a França e ocupada Paris pelas tropas nazis, a 6 de Julho de 1940, o poeta, incondicional papista e ex-embaixador Paul Claudel registava no seu «Diário» o seguinte «mimo» de interpretação «filosófica» da história do seu país: «A França libertou-se, sessenta anos depois, do jugo do partido radical e anticatólico (professores, advogados, judeus, franco-mações). O novo Governo invoca Deus e devolve a Grande Cartuxa aos religiosos. Esperança de sermos libertados do sufrágio universal e do parlamentarismo, assim como do domínio maldoso e imbecil dos professores que durante a última guerra se cobriram de vergonha. Restauração da autoridade.» Endoidecera, o autor de «Le Soulier de satin»?

Não, decerto que não endoidecera, tão-pouco «estava na Lua». Tinha, aliás, como é uso dizer-se, «os pés bem assentes na Terra», mas talvez demasiadamente, dado que, sendo poeta, já nem se permitia sonhar com a liberdade. Tal como uma aterradora maioria de franceses, «esperava para ver», decidira «apostar» na passividade (nem um tiro parisiense fora então disparado contra os usurpadores) perante a ditadura de Pétain, os nazis, o colaboracionismo. Era talvez uma atitude prudente, porque nada heróica.

Conservar a vida – e os bens, caso eles existam – será porventura a reacção mais comum quando o invasor ocupa o nosso país, a nossa cidade, a nossa casa. Mas, a qualquer preço? Aí começam – começaram para os franceses – as «nuances». A extrema nobreza dos gestos ombreou com as mais abjectas traições: em boa verdade, os humanos talvez sejam assim, capazes de tudo.

É curioso – convenhamos, talvez não se estranhe – que os mais importantes livros escritos sobre este atribulado período não tenham sido assinados por historiadores franceses: foi Robert O. Paxton quem explorou o atoleiro onde mergulhou o regime de Vichy, Herbert Lottman quem apontou vários caminhos que a ele conduziram, e é, agora, Alan Riding quem colhe, com uma honesta destreza, frutos do que os seus dois antecessores semearam.

A tese de «And the Show Went On» não é contestável: muitos, mesmo muitos milhões, tanto do lado dos invasores como dos invadidos, estavam apostados em exibir, por palavras e actos, que viviam no melhor dos mundos possíveis na Paris ocupada pelos nazis. Os invasores queriam demonstrar que agradavam aos invadidos, estes optaram por continuar a «viver a sua vida». Cinema, teatro, música, literatura, artes, alta-costura – importava que tudo voltasse a funcionar aparentemente como antes da chegada dos mensageiros «arianos» instruídos por Goebbels e por bons conhecedores da cultura francesa, como o embaixador Otto Abetz. O trabalho do diplomata, entre artistas e intelectuais, foi eficaz: soube seduzir, convencer, corromper, distribuir convites para recepções, viagens, sinecuras. Não fez, aliás, mais do que qualquer governante «democrático» faria, a única questão residia no facto de representar o arbítrio do intruso.

Alan Riding põe o dedo na ferida da servidão de uns intelectuais e da adesão de outros à Resistência quando escreve: «De todos os artistas franceses que tiveram de viver sob a ocupação nazi, os escritores foram os que se viram obrigados a adoptar posições mais definidas e a assumir mais riscos.» (….) «Do lado dos perdedores houve tanto fascistas declarados como partidários de Vichy, nacionalistas anti-semitas e oportunistas cínicos. Flutuando em terra de ninguém ficaram os antigos conservadores, os católicos fervorosos e os anticomunistas. Entre os vencedores havia numerosos comunistas e um número menor de homens e mulheres mais inspirados por determinados princípios do que por uma ideologia».

A verdade, porém, é que foram poucos os escritores que se mostraram dispostos a deixar de ver aparecer o seu nome impresso. Fosse por razões económicas ou porque não abdicavam de se «pavonear», muitos sujeitaram-se a obedecer aos censores. Jean Guéhenno, rejeitando «fazer carreira com o desastre» e recusando publicar em órgãos de comunicação social oficialmente autorizados, poria a questão nos seus devidos termos: «Que vamos pensar dos escritores que, para terem a certeza de não desagradar à autoridade ocupante, decidem escrever acerca de tudo menos sobre a única coisa em que pensam todos os franceses? Ou, melhor ainda, daqueles que, pela sua cobardia, favorecem o plano desta autoridade, segundo o qual deve parecer que em França tudo se passa como dantes?»

Sugeriria mais tarde Aragon: «O contrabando na literatura é a arte de despertar sentimentos proibidos utilizando palavras autorizadas.» No entanto, para além de quaisquer subtilezas de linguagem, tanto ele como Éluard e muitos outros nunca desistiriam de denunciar com violência o nazismo e os colaboracionistas, recorrendo a publicações clandestinas.

Alcançada a vitória sobre as forças ocupantes, e não obstante as numerosas condenações judiciais de intelectuais comprometidos como o nazismo, não terão sido nunca claramente definidas, segundo releva Alan Riding, respostas rigorosas a perguntas como as seguintes: «Que constituía exactamente um acto de colaboracionismo? Haveria que incluir aqueles que num primeiro momento tinham sentido simpatia por Pétain? Poder-se-ia considerar traição assistir a uma recepção organizada pelos alemães? Era crível que um colaboracionista importante tivesse colaborado secretamente com os serviços secretos britânicos? Havia provas que dessem razão a alguns fascistas, que asseguravam ter salvado a vida de judeus, avisando-os de rusgas iminentes?» Muito terá, com efeito, ficado sem resposta política e jurídica, mesmo depois de milhares de execuções e condenações em tribunal. Resta-nos esperar que os mártires fuzilados, torturados e vítimas de outras atrocidades cometidas pelo colaboracionismo durante a ocupação nazi não sejam esquecidos pelos historiadores franceses contemporâneos…

Alan Riding, «Y siguió la fiesta – La vida cultural en el París ocupado por los nazis», Galaxia Gutenberg/Círculo de Lectores, 2011, 489 páginas