Apelo à autobiografia

António Rego Chaves

Diz uma personagem de Aldous Huxley, no romance «Sem Olhos em Gaza»: «Esse peso de experiências passadas que cada pessoa arrasta consigo! Deveria haver uma maneira de nos libertarmos das nossas reminiscências supérfluas. Como me aborrece o velho Proust! É realmente detestável.» Prossegue o autor: «E, com uma intensamente cómica eloquência, continuou a evocar a visão desse asmático investigador do tempo perdido: de cócoras, horrivelmente branco e flácido, com seios femininos mas providos de longos pêlos negros, eternamente de cócoras no banho morno do seu relembrado passado. E toda a água suja ensaboada das incontáveis lavagens anteriores flutuava à volta dele; a sujidade que os anos haviam acumulado agarrava-se, peganhenta, às paredes da banheira, ou era na água uma suspensão escura. E ali estava ele sentado, pálido e repelente inválido, a espremer sobre o rosto a esponja embebida em água ensaboada, a esvaziar copázios dela e a deleitar-se com bochechos e gargarejos do líquido cinzento e granuloso, a enxaguar o nariz com ele, como um piedoso hindu no Ganges…»

A aparente sobranceria do grande escritor inglês quase nos oculta o que de essencial se encontra em jogo em toda a verdadeira autobiografia: a procura da identidade, razão de ser do trabalho de muitos daqueles que tiveram a coragem de, com honestidade, se relatarem e nos relatarem o seu passado, sem ocultar o que nele consideravam mais significativo, ainda que correndo o risco de transmitir uma imagem negativa de si mesmos. É certo que a autobiografia se transformou, por vezes, num ajuste de contas com os outros; mas, quando orientada por um genuíno desejo de honradez, surge a quem a faz, acima de tudo, como doloroso ajuste de contas consigo próprio.

O italiano Duccio Demetrio é professor de Filosofia da Educação na Universidade de Milão, onde organiza seminários e grupos de investigação sobre formação permanente. Entre as suas obras, contam-se «A Idade Adulta», «Para uma Didáctica da Inteligência» e «A Educação na Vida Adulta». Este ensaio, «Escrever-se – a autobiografia como cura de si mesmo», foi publicado na língua materna do autor em 1995. A tese fulcral do livro sintetiza-se em breves palavras: o trabalho autobiográfico pode tratar-nos e converter-se numa forma de libertação e de unificação do eu. Quer isto dizer que todos estamos doentes? Em certa medida, a resposta é afirmativa; precisamente na medida em que um homem ou uma mulher que evita analisar criticamente o seu passado tem a sua saúde mental ameaçada.

Montaigne pôs o dedo na ferida, ao confessar: «Todas as contradições se dão em mim alguma vez ou de alguma forma. Envergonhado, insolente; casto, luxurioso; charlatão, taciturno; duro, delicado; engenhoso, estonteado.» E salientava que existe uma tão grande diferença entre uma pessoa e ela própria como entre ela e os outros. Quanto a Fernando Pessoa, pela voz de Ricardo Reis, não foi menos incisivo: «Se recordo quem fui, outrem me vejo/E o passado é um presente na lembrança.» Hermann Hesse, por sua vez, denunciou «o mito da unidade da pessoa», salientando que «nenhum eu, nem sequer o mais ingénuo, é uma unidade, mas um mundo altamente multiforme, um pequeno céu de estrelas, um caos de formas, de gradações e de estados, de heranças e de possibilidades» e que «como corpo, cada homem é uno, como alma, nunca.» Comenta Duccio Demetrio: «A depressão grave é sintoma de uma rendição perante a unidade, que se converte deste modo em nulidade; é a crise mais dramática daquela vida adulta que se rende porque não pode continuar a tolerar o dinamismo dos seus múltiplos eus.» O velho imperativo grego «conhece-te a ti mesmo» volta à ordem do dia – e nada melhor do que um texto sincero para o acatar.

Sustenta o neurologista britânico Oliver Sacks: «Sem memória a vida não é vida. A nossa memória é a nossa coerência, a nossa razão, o nosso sentimento, inclusive a nossa acção.» Recordar será, pois, um arrumar da casa interior, mas há que ter em conta os limites a que estamos sujeitos. Bem advertiu Proust: «Cada um dos dias do passado foi arquivado em nós como uma imensa biblioteca onde, entre os livros mais antigos, existe um exemplar que provavelmente ninguém nunca pedirá.» E Virginia Woolf desesperou até ao extremo de optar pelo suicídio: «A palavra ‘eu’é só uma cómoda designação para nomear alguém que realmente não existe.»

Poder-se-á repousar, uma vez completada a autobiografia? Nada menos aplicável a quem tem o «vício» de se questionar. Como fez notar Nietzsche, «quando alguém consegue encontrar-se a si mesmo, é preciso perder-se de vez em quando, para voltar a encontrar-se depois: sempre e quando, claro está, se trate de um pensador.» Sabia do que falava.

Conclui Ducio Demetrio: «Fazer autobiografia ensinou-nos a não ter medo da solidão, a procurá-la mais, custe o que custar: a vislumbrar com coragem a solidão dos anos que no entanto estão para vir e que porão à prova a nossa capacidade de viver o último acto, minuto a minuto, com a antiga sabedoria de quem, apesar de estar rodeado de curas morais e afectivas, ‘quer envelhecer bem’, como se costuma dizer. E envelhece-se bem se uma pessoa não tem ilusões (…) acerca do facto de que a antiga ‘ars moriendi’ [arte de morrer] é, foi e será para sempre uma ‘ars solitudine’ [arte da solidão].»

Espreitamos, neste espaço, os «vastos palácios da memória» de Santo Agostinho, Rousseau e Tolstoi, expoentes maiores da «confissão», que encararam de frente o seu passado e se quiseram explicar perante os seus coetâneos e a posteridade. As circunstâncias de nenhum deles ter sido um homem comum e de todos eles se terem celebrizado não os excluem do que acima fica dito acerca das virtudes terapêuticas da autobiografia. Só que as suas obras se revelaram bem mais do que privadas tentativas de «cura» – antes se transformando em referências fundamentais da cultura contemporânea.

Duccio Demetrio, «Escribirse», Paidós, 1999, 214 páginas