Sem Igreja possível (Simone Weil)

António Rego Chaves

Philippe Sollers, dissertando sobre Simone Weil (cujo perfil já esboçámos nestas páginas, por ocasião da publicação de «A Gravidade e a Graça») recorda Raymond Aron: «Ela aparentemente ignorava a dúvida e, se as suas opiniões podiam mudar, eram sempre igualmente categóricas.» E conclui: «Simone Weil é realista, quer o impossível: a impossibilidade é a única porta para Deus.» Fórmula talvez luminosa, mas demasiado ofuscante para nos esclarecer. Esclarece-nos, sim, o abade de Naurois, um dos últimos que a visitaram no hospital onde viria a falecer, em Londres, que negou ter-lhe recusado o baptismo, pela simples razão de que a filósofa nunca lho pediu, ao contrário do que Georges Hourdin, um dos seus biógrafos, sustentou e acabaria por desmentir, a pedido do eclesiástico. Questão de pormenor? Talvez não.

Talvez não porque, mesmo quando viveu na carne a condição operária e se assumiu como sindicalista, a prática de Simone Weil (1909-1943) nunca deixou de ser adequada a uma verdadeira cristã. Talvez não porque, mesmo quando se dispôs a auxiliar os republicanos contra os franquistas identificados com o nacional-catolicismo espanhol, nada no seu comportamento poderia desmentir que escolhera a causa daqueles pelos quais considerava que Jesus optaria – os pobres. Talvez não, ainda, porque, tendo herdado do seu mestre Alain o horror pela guerra, em todas as circunstâncias nas quais lhe foi possível escolher lutou pela paz e não pela violência.

Escreveu o teólogo Juan-José Tamayo: «Muito poucas pessoas foram capazes de compreender a profundidade do seu pensamento heterodoxo, a autenticidade da sua fé religiosa aconfessional e o radicalismo da sua militância operária não-partidária.» De facto, o seu temperamento impediu-a sempre de qualquer «conversão», fosse ela a uma ideologia, a uma Igreja ou a uma organização política. Toda a verdade institucional lhe era estranha, porque jamais renunciaria a aplicar o seu implacável espírito crítico a qualquer pretensa «verdade absoluta». Em vão tentarão alguns reivindicá-la, «domesticá-la» e integrá-la onde nunca esteve porque não queria estar – a saber, na Igreja Católica. «Espera de Deus» constitui mais uma prova cabal de que tal intento se encontra condenado a um irremediável malogro.

São suas as seguintes considerações: «O que me amedronta é a Igreja enquanto coisa social. Não apenas por causa das suas nódoas, mas devido ao facto mesmo de esta ser, entre outros aspectos, uma coisa social.» (…) «Tenho medo desse patriotismo da Igreja que existe nos meios católicos. Entendo o patriotismo como o sentimento que se concede a uma pátria terrestre. Tenho-lhe medo porque tenho medo de o contrair por contágio.» (…) «Houve santos que aprovaram as Cruzadas, a Inquisição. Não posso deixar de pensar que se enganaram. Não posso recusar a luz da consciência. Se penso que sobre certo ponto vejo mais claramente do que eles, eu que lhes fico tão aquém, devo admitir que, quanto a esse ponto, qualquer coisa de muito poderosa os cegou. Esta qualquer coisa é a Igreja enquanto coisa social.» Valerá a pena acumular mais exemplos do erro que seria tomar esta mística revolucionária por católica romana?

Ninguém se atreverá, no entanto, a contestar que em todas as ocasiões agiu ou procurou agir em consonância com o mais exigente cristianismo, não um cristianismo fácil, das palavras, mas o que até a vida pode pôr em risco, o que se traduz por actos. Ela própria o disse: «Sempre adoptei como única atitude possível a atitude cristã. Por assim dizer, nasci, cresci, permaneci sempre na inspiração cristã. Quando nem o nome de Deus tomava a mais pequena parte nos meus pensamentos, tinha, em relação aos problemas deste mundo e desta vida, a concepção cristã de uma forma explícita, rigorosa, com as noções mais específicas que ela comporta.» (…) Também tive, desde a primeira infância, a noção cristã da caridade para com o próximo, à qual dava esse nome – justiça – que encontramos em vários passos do Evangelho, e que é tão belo.» (…) «Claro que sabia que a minha concepção da vida era cristã. É por isso que nunca me ocorreu que poderia entrar no cristianismo. Tinha a impressão de ter nascido no seu interior. Mas acrescentar o dogma a essa concepção de vida, sem a isso ser obrigada por uma evidência, pareceu-me uma falta de probidade.» (…) «Abstendo-me assim do dogma, era impedida por uma espécie de pudor de entrar nas igrejas, onde, todavia, gostava tanto de me encontrar.»

Foi ao que parece em Caxinas, perto de Vila do Conde, em Assis e em Solesmes que viveu os mais significativos contactos com o catolicismo, segundo nos narra na «Autobiografia Espiritual». Naquela aldeia portuguesa, diz, «as mulheres dos pescadores faziam um percurso em redor dos barcos, em procissão, empunhando círios e entoando cânticos, decerto muito antigos, de uma tristeza dilacerante». (…) «Nunca tinha conhecido nada de tão pungente, a não ser o canto dos barqueiros do Volga. Aí tive, repentinamente, a certeza de que o cristianismo é, por excelência, a religião dos escravos, que os escravos não podem senão aderir a ela, e eu entre eles.» Em Assis, na capela de Santa Maria degli Angeli, onde São Francisco tantas vezes rezou, «qualquer coisa mais forte do que eu obrigou-me, pela primeira vez na minha vida, a ajoelhar». Finalmente, em Solesmes, durante as cerimónias religiosas da Páscoa, «o pensamento da Paixão de Cristo entrou em mim pela primeira vez.»

Sem Igreja possível, Simone Weil? Decerto que sim. Porque no seu cristianismo acolhia Platão, a Ilíada, os pitagóricos, os estóicos gregos, Dioniso, Osíris, Lao-Tse, a Bhagavad-Guitá. Porque a sua plena abertura a religiões não-cristãs e o seu repúdio do Deus do Antigo Testamento implicavam a renúncia ao baptismo. Porque «a função própria da inteligência exige uma liberdade total, implicando o direito a tudo negar e nenhuma dominação». Por isso se tornou, e sem apelação nem agravo, inconciliável com todos os totalitarismos de ordem espiritual, incluindo o da Igreja Romana.

Simone Weil, «Espera de Deus», Assírio & Alvim, 2005, 252 páginas

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