Papa Pio IX (Roberto De Mattei)

Simplificação e panegírico incondicional

De Mattei não fez obra de honrado investigador,

mas de zeloso e acrítico cortesão do Vaticano…

António Rego Chaves

Eis Pio IX (papa de 1846 a 1878) no pleno esplendor do seu autoritarismo: autoritarismo ao assumir-se com paladino da imaculada concepção de Maria, «libertando» a mãe de Jesus do pecado original, autoritarismo ao condenar qualquer ideia, a seu ver ameaçadora, da hegemonia espiritual e temporal da Igreja Católica, autoritarismo, ainda, ao fazer-se proclamar «infalível» pelo Concílio Vaticano I. E sempre pronto a brandir perante os dissidentes, ex cathedra, o «divino» gládio da excomunhão.

Tornarmo-nos responsáveis pela apologia de uma tal personagem – ainda que ocultando muitos factos históricos de que ela foi activa protagonista, incluindo o anti-semitismo – é sem dúvida ainda mais acrobático do que proclamar, urbi et orbi, que a irmã Lúcia de Fátima é «uma das nossas figuras intelectuais mais influentes», como foi escrito com todas as letras nas páginas deste jornal ainda há poucos dias, já em pleno século XXI…

Estamos – felizmente – num país livre: isso significa que quase todas as opiniões são publicáveis, incluindo a referida sobre a irmã Lúcia, as do livro que hoje nos ocupa e as deste texto que assume o direito de o apreciar sem se preocupar com a eventual sanha de quaisquer aspirantes a torquemadas. Mas será sensato afirmar, como João Paulo II fez, que Pio IX «foi exemplo de incondicional adesão ao depósito imutável das verdades reveladas»? Será sensato afirmar, como João Paulo II fez, que Pio IX «soube dar primazia absoluta a Deus e aos valores espirituais»? Será sensato afirmar, como João Paulo II fez, que Pio IX esteve «ao serviço do Evangelho»?

A resposta parece-nos ser um rotundo «não». Não a pretensos «depósitos imutáveis» pairando acima do espaço e do tempo, não à mistificação do papel negativo de Pio IX na unificação da Itália, não a uma interpretação do Evangelho que permita confundir fé e religião, consciência individual e política vaticana, espírito e letra. Pois não é certo que «a letra mata, o espírito vivifica»?

«Último monarca absoluto na Europa, Pio IX erigiu a Roma pontifical em fortaleza contra os patriotas da unidade italiana, ferozmente reprimidos por ele», escrevia, a 3 de Setembro último, o diário Le Monde. «Hostil a qualquer emancipação doutrinal ou nacional, fechou as portas aos judeus e aos católicos liberais. O seu Syllabus de 1864 condenava a democracia, a liberdade de religião, a separação da Igreja e do Estado, o racionalismo, o socialismo e qualquer forma de modernismo», sublinhava o mesmo jornal. E o ministro israelita encarregado das relações com a diáspora judaica, Michael Melchior, afirmava, na mesma ocasião, que «a beatificação de Pio IX pode ser interpretada pelo mundo judaico como uma aceitação pela Igreja Católica Romana da longa prática das conversões forçadas».

Pouco importará a Roberto De Mattei saber se, ao beatificar Pio IX, João Paulo II cedeu mais uma vez aos chamados «tradicionalistas» que ainda não «digeriram» o Concílio Vaticano II ou se obedeceu unicamente à sua própria consciência. Pouco lhe importará saber, também, que vozes autorizadas de teólogos como Hans Küng, Edward Schillebbeckx e Jan Sobrino ou do bispo Jacques Gaillot manifestaram sérias reservas quanto à iniciativa consumada pelo Sumo Pontífice. Pouco lhe importará saber, finalmente, que um grupo de historiadores católicos alemães declarou que a beatificação de Pio IX representa «uma desautorização de todas as declarações do actual Papa sobre os direitos do homem, o ecumenismo e as relações com os judeus». O que importará mesmo a Roberto Di Mattei, ainda que tendo analisado apenas a ponta mais lisonjeira do icebergue que foi o longo pontificado de Pio IX, é o panegírico incondicional – e este não há dúvida que fica para a posteridade com a virtude, a inegável virtude, de apresentar integralmente documentos tão controversos como as encíclicas Ineffabilis Deus e Pastor Aeternus, além do tristemente célebre Syllabus, verdadeiro modelo de intolerância ultramontana. E o vício, o inegável vício, de não ser obra própria de honrado investigador, mas de zeloso e acrítico cortesão do Vaticano de João Paulo II…

Roberto De Mattei, «Pio IX», Civilização Editora, 2000, 347 páginas

Publicado no «Diário de Notícias» em 24.02.2001