O fanatismo terá cura? (Amos Oz)

António Rego Chaves

Numa longa entrevista concedida em 1995 ao jornal «Le Monde», o grande romancista israelita Amos Oz , já então há longos anos empenhado no diálogo com os palestinianos, defendia sem rodeios a necessidade da existência de dois Estados no território ocupado pelos seus compatriotas. Referindo-se à barbárie nazi, argumentava: «Deixei de utilizar expressões como Shoah ou Holocausto. Considero que a palavra ‘Shoah’ [em hebraico, ‘catástrofe’] se aplica sobretudo a acontecimentos como o tremor de terra de Kobé. O que se perpetrou no continente europeu há cerca de meio século não foi de forma alguma uma ‘catástrofe’, mas um crime, um homicídio, e é necessário chamar os assassinos pelo seu nome. Sou contra qualquer tentativa de fazer disso um tema metafísico, como os judeus ortodoxos e, mesmo, como alguns laicos.»

Nascido em Jerusalém, sob mandato britânico, em 1939, Amos Oz, que se tornaria em 1977 num dos fundadores do movimento «Paz Agora», depois de ter combatido como soldado nas guerras de 1967 e 1973, gosta de acentuar que os árabes e os judeus foram duas das grandes vítimas da Velha Europa: os árabes pela colonização, pela humilhação, pelo imperialismo, os judeus pela discriminação, pela perseguição, pelo genocídio. Quanto à questão israelo-palestiniana, não é menos claro: «Trata-se de um conflito entre o que é justo e o que é justo, entre o Bem e o Bem, por vezes entre o que está mal e o que está mal, mas nunca, nunca, entre os Bons e os Maus.»

Os textos agora publicados em língua portuguesa, com o título «Contra o Fanatismo» (perde-se por completo, infelizmente, o saboroso tom provocatório do inglês «How to Cure a Fanatic»), desmistificam desde o início a islamofobia tão em voga no Ocidente dito «politicamente correcto»: «A actual crise mundial, no Médio Oriente, em Israel e na Palestina, não é uma consequência dos valores do Islão. Não se deve à mentalidade dos árabes, como proclamam alguns racistas. De forma alguma. Deve-se à velha luta entre fanatismo e pragmatismo. Entre fanatismo e pluralismo. Entre fanatismo e tolerância.» (…) «O fanatismo é mais velho do que o Islão, do que o Cristianismo, do que o Judaísmo. Mais velho do que qualquer Estado, governo ou sistema político.» E acrescenta, sem prescindir de uma pública autocrítica: «A minha própria infância em Jerusalém tornou-me especialista em fanatismo comparado.» (….) «Confesso que em miúdo, em Jerusalém, também eu era um pequeno fanático limitado por uma lavagem cerebral. Com presunção de superioridade moral, chauvinista, surdo e cego a qualquer ponto de vista que fosse diferente do poderoso discurso judeu sionista da época. Eu era um rapaz que atirava pedras [aos ingleses], um rapaz da Intifada judaica.»

Mas, em que consiste, afinal de contas, o fanatismo? Segundo o autor, trata-se de algo que está à nossa volta e, mesmo, não poucas vezes, ainda mais perto, dentro de nós. Não-fumadores dispostos a queimar vivos todos os fumadores, vegetarianos prontos a devorar quem se atreva a comer carne, pacifistas capazes de disparar uns sobre os outros porque defendem tácticas antagónicas para alcançar a paz. Em suma: «A semente do fanatismo brota ao adoptar-se uma atitude de superioridade moral que impeça a obtenção de consensos.» Mas a essência do fanatismo, qual é? Em poucas palavras: «O desejo de obrigar os outros a mudar». Explicitando: «Essa tendência tão comum de melhorar o vizinho, de corrigir a esposa, de fazer o filho engenheiro ou de endireitar o irmão, em vez de deixá-los ser. O fanático é uma das mais generosas criaturas. O fanático é um grande altruísta. Está mais interessado nos outros do que em si próprio. Quer salvar a nossa alma, redimir-nos. Livrar-nos do pecado, do erro, do tabaco, da nossa fé ou da nossa carência de fé. Quer melhorar os nossos hábitos alimentares, ou curar-nos do alcoolismo e do hábito de votar. O fanático morre de amores pelo outro. Das duas, uma: ou nos deita os braços ao pescoço porque nos ama de verdade, ou se atira à nossa garganta no caso de sermos irrecuperáveis.»

Eis, pois, a génese da temível anomalia, da (in)curável doença, da negra epidemia. «Muito frequentemente, tudo começa na família. O fanatismo começa em casa. Começa precisamente pela urgência tão comum em mudar um ser querido para seu próprio bem.» Para seu próprio bem, para comodidade do fanático, para maior glória de todo o clã? Adiante. Solução proposta, ou seja, o mais eficaz antibiótico, segundo o nosso «catedrático» de fanatismo comparado: «Atrever-me-ia a assegurar que, pelo menos em princípio, julgo ter inventado o remédio contra o fanatismo. O sentido de humor é uma grande cura. Jamais vi na minha vida um fanático com sentido de humor, nem nunca vi qualquer pessoa converter-se num fanático, a menos que ele ou ela tivessem perdido esse sentido de humor. Os fanáticos são frequentemente sarcásticos. Alguns deles têm um sarcasmo muito agudo, mas de humor, nada. Ter sentido de humor implica a capacidade de se rir de si próprio. Humor é relativismo, humor é a habilidade de nos vermos como os outros nos vêem.» Humor, relativismo? Lidas em 2007, impossível deixar de associar estas palavras à arrogante recusa de qualquer espécie de relativismo – e de genuíno respeito pelo Outro – por parte do «infalível» Ratzinger, um dos mais recentes autoproclamados detentores de verdades absolutas…

Será ainda necessário, em pleno século XXI, «écraser l’Infâme», isto é, os fanáticos, todas as espécies de fanáticos, venham eles de onde vierem, como, pouco antes da Revolução Francesa, preconizava Voltaire, que assegurava ser a discórdia o grande mal que ameaçava o género humano e a tolerância o seu único antídoto? E que era isso de tolerância, para o autor do «Dicionário Filosófico»? Nada mais, nada menos, do que «o apanágio da humanidade». Aconselhava: «Perdoemo-nos reciprocamente as nossas estupidezes, é a primeira lei da natureza.» Teremos aprendido a lição, lá pelo Médio Oriente, aqui na Europa e, muitíssimo mais perto, no interior de nós próprios?

Amos Oz, «Contra o Fanatismo», Asa/Público, 2007, 95 páginas