Contra a Igreja Romana (Cavaleiro de Oliveira)

António Rego Chaves

A tragédia de 1 de Novembro de 1755 provocou reacções em toda a Europa. Já nestas páginas apreciámos a de Voltaire no «Poema sobre o Desastre de Lisboa» e a de Kant nos «Escritos sobre o Terramoto de Lisboa». Falemos hoje, em vésperas do 250.º aniversário da catástrofe, do «Discurso Patético sobre as Calamidades Presentes Sucedidas em Portugal» (1756), do «Seguimento do Discurso Patético» (1757) e de «O Cavaleiro de Oliveira Queimado em Efígie como Herético» (1762), três obras impedidas de circular em Portugal pela Santa Inquisição.

Afirma Coimbra Martins sobre autor destes três textos, exilado em Londres: «O mais característico estrangeirado da época pombalina terá sido o Cavaleiro de Oliveira, que escreveu tanto em francês como em português. Pertencia à classe dos menos ambiciosos, que não empreendem modificar o País e se contentam com serrazinar de longe e viver a seu modo em local seguro. Por gosto ou justo receio: não esquecer que a efígie do Protestante Lusitano ardeu em Lisboa em auto-de-fé, apesar de ele ser, de facto, mais um “refractário” que um avançado.» Sublinha Pedro Calafate que, na argumentação do Cavaleiro acerca do terramoto, se cruzam, «por um lado, o interesse em vituperar as formas de espiritualidade religiosa e as práticas de culto vigentes em Portugal, a que se juntava a sua crítica à acção do Tribunal do Santo Ofício; por outro lado, uma filosofia da natureza que radicava no fundo da tradição bíblica, nomeadamente no Livro dos Salmos.» Acrescentemos algo que nos parece específico de todas estas obras agora traduzidas e apresentadas por Jorge Pires: o ataque frontal a alguns «intocáveis» dogmas da Igreja Romana, a apologia do protestantismo, a que Oliveira aderira pela mão da Igreja Anglicana, a intransigente defesa do poder real contra o chamado «poder espiritual» da casta eclesiástica.

Nos antípodas de Gabriel Malagrida, que considerara o sismo como um «castigo de Deus» por os lisboetas não serem «bons católicos», mas, como o jesuíta, também em nome da «única religião verdadeira», o Cavaleiro de Oliveira afirma sem rodeios, apoiando-se na Sagrada Escritura, que a cólera divina se deveu ao «papismo» dos crentes portugueses, «pois, à força de devoções absurdas, de sacrifícios horríveis e de orações vãs e indignas de ser atendidas, eles mergulharam na superstição mais vergonhosa e na idolatria mais grosseira». Encarando o culto das imagens como «o renovamento da idolatria dos pagãos», recorda que o terramoto ocorreu precisamente no Dia de Todos os Santos e que uma grande parte dos habitantes de Lisboa pereceu precisamente sob as ruínas das igrejas dedicadas a esses mesmos santos. Atreve-se, mesmo, a apelidar o Senhor dos Passos de «o Júpiter da nação portuguesa», põe em causa a transubstanciação e os «sacrifícios sanguinolentos da missa», a existência do Purgatório, a adoração da Virgem Maria, a infalibilidade e o poder dos papas, a confissão auricular, a Inquisição. Mas vai ainda mais longe: «A origem de todo o mal é que se fecharam em Portugal todas as entradas à lei de Deus, ao proibir aí o curso, a leitura e a meditação da sua Santa Palavra. Em suma, ela é aí proibida em língua vulgar, e o povo não poderia deitar sobre ela os olhos sem se arriscar a mil espécies de tormentos, com os quais o temível Tribunal da Inquisição o ameaça em semelhante caso.» (…) «A verdade é que a Lei de Deus tal como ele no-la deu escrita pela sua própria mão, e tal como a vemos no XX capítulo do Êxodo, não é de todo conhecida em Portugal. Eis a proposição capital e sobre a qual estão fundadas todas as outras que avancei no meu ‘Discurso Patético’.» Em nada exagerava. Recorda José Timóteo da Silva Bastos, na sua já desactualizada mas sempre preciosa «História da Censura Intelectual em Portugal» (1926), referindo-se ao primeiro rol dos livros proibidos, elaborado em 1551 pelo Cardeal Inquisidor-Geral D. Henrique, que a sua leitura ou posse implicava a pena de excomunhão, assim como para aqueles que não viessem à mesa do Santo Ofício denunciar os seus leitores e possuidores, e que «se proibia a leitura da Bíblia em lingoagem» (sic), isto é, traduzida para português. Mais de dois séculos passados, tudo continuava na mesma.

Invocando a autoridade moral do Papa Pio II (1458-1464) e do Padre António Vieira (1608-1697), o Cavaleiro defende com paixão a causa dos judeus perseguidos e espoliados dos seus bens, em proveito próprio, pela Inquisição: «Portugal nunca será feliz antes da inteira abolição do Tribunal do Santo Ofício; e os interesses deste reino exigem, em absoluto, que o soberano permita aos judeus terem uma sinagoga, no mesmo palácio que os inquisidores têm hoje em sua posse.» Exaltando a intervenção do arcebispo Bartolomeu dos Mártires no Concílio de Trento (1562-63), advoga a reforma radical de todo o Estado eclesiástico, a começar pelo Papa, «a fim de purificar o ouro do Santuário de Jesus Cristo de todas as ligas com que ele foi maculado». Enfim, recordando a tragédia de 1755, exorta Portugal a «receber a palavra de Deus em toda a sua pureza» – ou seja, a ler a Bíblia, seguindo o exemplo dado pelo protestantismo –, e a «abolir inteiramente o Tribunal da Inquisição».

Observa Joaquim de Carvalho: «Que o “Discours” era absolutamente contrário à mediana mentalidade e cultura do século XVIII em Portugal, não é para surpreender. Desde o sentimento religioso, exacerbado com o terramoto, às ideias políticas que orientavam o Estado; desde a estrutura moral e mental da época, cimentada numa ideia de intolerância e purificação, ao tom, por vezes jocoso ou irreverente, e quase sempre panfletário do “Discours” –, tudo concorria para a repulsa com que foi recebido e para a conspiração de silêncio, verdadeiramente tumular, que em seu torno se fez.» Concluamos com Aquilino Ribeiro: «O Cavaleiro foi relaxado em estátua. A sua efígie teve a honra de figurar num dos derradeiros autos-da-fé que se celebraram em Portugal. Estava dada satisfação ao beatério ainda poderoso; a nau de Pombal podia singrar.»

Francisco Xavier de Oliveira, «Discurso Patético sobre as Calamidades Presentes Sucedidas em Portugal» e outros textos, Frenesi, 2004, 246 páginas