A obsessão de Schopenhauer

António Rego Chaves

Arthur Schopenhauer (1788-1860) publicou a sua obra capital – «O Mundo como Vontade e como Representação» – em 1818, aos 30 anos. Teve de esperar outros trinta para a ver respeitada. É certo que Nietzsche, Wagner e Tolstoi o saudaram como um génio – mas já o grande misantropo jazia morto e sepultado. Quanto a Goethe, único dos seus coetâneos que o filósofo admirou sem reservas, primou pelo quase-silêncio. O incontestado patriarca das letras alemãs durante decénios, apesar de ter lido e anotado o prodigioso texto, não se dignou referi-lo senão por ambíguas evasivas.

Antonio Priante, espanhol, autor de uma obra de ficção sobre a vida e amores de Catulo («Lesbia mia») e de uma «autobiografia» de Cícero («La encina de Mario»), oferece-nos aqui a fascinante evocação das últimas horas de Schopenhauer. É a corrente de consciência do filósofo que o autor procura captar, evocando a infância, a maturidade e a velhice, a alegria e a dor, o amor e o ódio, o quotidiano e o perene da sua existência. Mais do que a biografia de um indivíduo, perdura o perfil estrutural do «bípede humano», aqui e ali desfocado por aspectos conjunturais do século XIX.

Schopenhauer monologa perante o seu cão, na solitária modorra que precede o dia em que morrerá. Tudo lhe aflui à memória. Goethe, o tal que não falou a tempo, o que não lhe deu a mão para o tornar admirado pelos seus contemporâneos. Goethe, que lera o primeiro ensaio que lhe mostrou, «Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio da Razão Suficiente», mas que dele pouco mais retivera do que a importância dada à intuição como forma de conhecimento. Goethe que, perante «O Mundo como Vontade e como Representação», não articulara sequer uma única generosa palavra de apreço.

A sua misantropia tinha, contudo, origens mais fundas: saber-se filho indesejado de um pai bondoso mas ausente e, mais tarde, suicidado, e de uma mãe frívola, embora talentosa escritora de sucesso, que invejava a profundidade do seu pensamento. Tratava por «tu» a solidão, essa solidão que sempre o acompanhara e que o leva, aos 72 anos, na véspera da sua morte, a falar, ora sozinho, ora para o cão. Essa solidão que o obrigara a repudiar os «filósofos da moda» como Schleiermacher, Fichte, Hegel, nada mais lhe importando do que a «herança sagrada de Platão e de Kant», além de Locke, Berkeley, Hume, Espinosa. Essa solidão que o impedira de aprovar o agressivo «patrioteirismo» alemão do seu tempo, eivado do tradicional anti-judaísmo cristão.

Meditava: «O problema de tantos escritores, filósofos ou não, é que não têm nada que dizer e, no entanto, escrevem. Pensam para escrever, em vez de escrever porque pensaram.» Dizia: «Posso trabalhar e de facto trabalho pelo género humano muito mais do que todos os homens trabalham por mim. Sou capaz dos maiores sacrifícios pela Humanidade, mas não de suportar todos os dias as suas estupidezes e maldades.» O mutismo de Goethe obcecava-o, agora como aos 35 anos, perguntando de si para si: «Por que te calas? Que significa o teu silêncio? Por que não proclamas perante o mundo que o teu filho amado encontrou a verdade que o mundo espera? À Humanidade entregaste a flor da poesia, por que lhe negas agora a essência da verdade? Ninguém sabe nada de mim e se tu não falas a obra cimeira do pensamento humano morrerá comigo. Calas-te? Estás mudo? Que injusto és, comigo e com a Humanidade! Só o Deus cruel dos judeus seria capaz de um silêncio como o teu…»

Fala para o cão. Sorri. «A filosofia de Schopenhauer explicada a um cão». Já que tão poucos homens a entenderam, por que não expor ao simpático bicho o essencial de «O Mundo como Vontade e como Representação?» E diz-lhe: «Só tens de me olhar e fazer uma cara de quem me compreende. Como fazem alguns que conheço. Não sei se és muito inteligente ou não, mas a expressão do teu rosto é muito mais inteligente que a de muitos seres humanos, disso podes estar certo.»

Começa: «O mundo é a minha representação». Fala-lhe do tempo, do espaço, da causalidade, enfim, das «formas a priori de conhecer que o cérebro, o intelecto, aplica em todas e cada uma das suas operações de uma maneira constante e necessária». Do fenómeno e da coisa-em-si. Até aqui, nada que o «velho» Kant não tivesse já dito e redito. Mas, depois, chega a inovação, a sua grandiosa descoberta: a coisa-em-si não é incognoscível, como sustentava o autor da «Crítica da Razão Pura», a coisa-em-si é a Vontade». E, pela noite fora, ensina ao cão o que os homens nunca tinham entendido.

Os pensamentos de Schopenhauer voltam-se, depois, uma vez mais, para o aterrador silêncio de Goethe: «É como uma lousa, uma lousa que tive de suportar ao longo da minha vida, uma lousa que toda a fama e popularidade destes últimos anos não conseguiram mover nem uma polegada…» (…) «O silêncio de Goethe, que perversa semelhança fonética, e também em inglês, ‘the silence of Goethe, of God?’ O silêncio de Deus. Fui eu quem reduziu Deus ao silêncio, quem o fez desaparecer para sempre, despojando-o das suas sucessivas máscaras – senhor do povo judeu, pai e redentor do cristianismo, ‘natura naturans’ do panteísmo, Absoluto do hegelianismo –, todas acabaram em nada. Sim, fui eu quem reduziu Deus ao silêncio, quem destruiu o falso conceito que impedia ver a realidade do ser indestrutível, cego e sem razão, que há séculos os hinduístas já tinham avistado.» (…) «O silêncio de Deus é explicável, o de Goethe não, o silêncio de Goethe não é explicável…a não ser que…»

A não ser que Schopenhauer possa sonhar. Adormece, sonha. O poeta surge-lhe com a condecoração da Estrela da Ordem, que brilha com luz própria. Oferece-a ao filósofo, quebra enfim o silêncio. Aproxima-se dele e abraça-o, impulsionado pela essência do Universo, a força indestrutível, cega e sem razão da Vontade eterna, chave de todos os seres e do mundo, «autor secreto de todos os sonhos, que é o mesmo autor secreto do destino que nos governa, que é o mesmo actor, protagonista, dos sonhos e da vida»… O que na vigília não obteve, alcança-o ele, pelo sonho, graças ao poder da Vontade.

Antonio Priante, «El silencio de Goethe o La última noche de Arthur Schopenhauer», Cahoba, 2006, 143 páginas