Hans Magnus Enzensberger («El gentil monstruo de Bruselas o Europa bajo tutela»)

Adeus, democracia!

António Rego Chaves

Há uma grave, fundamentada e péssima «notícia» neste livrinho de Hans Magnus Enzensberger: nós, europeus integrados na UE, já não vivemos em democracia, pois não designamos nem controlamos quem de facto – não de direito – nos governa. Deixámo-nos, por inércia, desleixo ou cobardia, chegar aonde chegámos, conduzidos pela mão do monstro de Bruxelas. Quase sem protestos, abdicámos em dois ou três decénios de um dos bens que mais parecíamos prezar: a liberdade de escolher quem mais ordena. É pois lícito dizermos que já nos encontramos numa «era pós-democrática».

Do alto dos seus mais de 80 anos, com uma ironia por vezes arrepiante, o poeta, ficcionista e ensaísta alemão vai lançando uma a uma as suas granadas, que não são argumentos, mas factos e números incontestáveis. E diz-nos lentamente o que, de chofre, vos repito: somos governados, não por aqueles que escolhemos para nos governarem, mas por uns milhares de burocratas anónimos que, instalados em Bruxelas, produzem as normas que determinam o que podemos ou não podemos fazer, o que devemos ou não devemos fazer. A democracia, tal como nós a conhecíamos em finais dos anos 70, está «ultrapassada»: agora temos de viver de acordo com as «instruções» recebidas de Bruxelas, sem que saibamos para quem apelar.

Recorda Enzensberger, citando o escritor austríaco Robert Menasse: «É um facto que todos os que se associaram na União Europeia são países democráticos; mas não é menos factual que, ao fazê-lo, perderam, ou mesmo entregaram deliberadamente, alguns padrões democráticos que se tinham alcançado nos Estados nacionais.» (…) «Na UE, a divisão de poderes está suspensa. Ainda que o Parlamento seja eleito, não tem nenhum poder de iniciativa legal; tem-no a Comissão. Mas a Comissão é uma instituição em que a legitimação democrática fica anulada: trabalha nela um aparelho não eleito e indestituível por plebiscito que suspendeu a divisão de poderes.» (…) «Do ponto de vista político-democrático, essa tríade formada pelo Parlamento, o Conselho e a Comissão produz um buraco negro aonde desaparece o que entendemos por democracia.»

O significado da expressão «défice democrático» torna-se, pois, evidente para todos os europeus: «Como se as lutas constitucionais dos séculos XIX e XX nunca tivessem existido, o Conselho de Ministros e a Comissão acordaram, logo no momento fundacional da Comunidade Europeia, que a população não teria voz nem voto nas suas decisões. Já ninguém acredita que essa recaída em situações pré-constitucionais possa ser curada por meio de correcções cosméticas. Portanto, aquele défice não é mais do que uma nobre expressão para referir a incapacitação política dos cidadãos.»

Em tempos houve, contudo, excepções à regra, mas parecem ter acabado: «Uma ou outra vez, os noruegueses, os dinamarqueses, os suecos, os holandeses, os irlandeses e os franceses disseram ‘não’. Se dependesse dos executivos da União, tal coisa nunca mais viria a ocorrer. Outro elemento que os perturba é o facto de que os britânicos e os suíços, inventores da democracia europeia, parecerem não querer dizer adeus à democracia.»

Copia-se a velha retórica do senador Joseph McCarthy e do Politburo da URSS: já não se fala de «actividades antiamericanas», nem de «manobras anti-soviéticas; «José Manuel Barroso, presidente da Comissão, chegou a afirmar que aqueles Estados membros que se opunham aos seus planos não actuavam ‘de acordo com o espírito europeu’. (Quis forçar um novo imposto e intervir, mediante um subterfúgio, nas legislações orçamentais dos Parlamentos nacionais quando se negociava o orçamento europeu).»

Prossegue Hans Magnus Enzensberger: «A União Europeia pode vangloriar-se de ter posto em prática um regime sem precedentes históricos. A sua originalidade consiste em que actua sem violência. Caminha nos bicos dos pés. Apresenta-se como um ente não-misericordiosamente filantrópico. Só quer o melhor para nós. Qual bondoso tutor, preocupa-se com a nossa saúde, os nossos modos e a nossa moral. Em nenhum caso conta com a possibilidade de que escolhamos o que é bom para nós; a seus olhos, somos demasiado impotentes e incapazes disso. Por isso precisamos de ser assistidos e reeducados a fundo.»

Estamos sob tutela: «A UE não concebe a sua missão como um exercício de opressão dos seus cidadãos, mas como um acto de homogeneização absolutamente silenciosa das condições de vida no continente. Não constrói um novo cárcere para os povos mas uma casa de correcção à qual incumbe a supervisão, bondosa mas severa, daqueles que são entregues à sua protecção.» Trata-se de «reeducar» cerca de 500 milhões de pessoas…

O autor recorre a La Boétie (1530-1563), o amigo de Montaigne e autor do célebre «Discurso sobre a Servidão Voluntária», para que encaremos de frente a nossa actual condição: «É o povo que repudia a liberdade e elege o jugo.» Não é preciso dizer mais nada: temos o que escolhemos, abdicámos dos nossos direitos de cidadania, deixámos «transferi-los» para Bruxelas.

Nada a fazer? Para já, dir-se-ia que não. A não ser que… a não ser que a história tenha as suas leis ocultas, a não ser que a história se repita: «A Europa já superou tentativas muito distintas para uniformizar o continente. Todas tinham em comum a soberba e nenhuma teve êxito duradouro. Também da versão não violenta de tal projecto não se pode fazer um diagnóstico favorável. A todos os impérios da história os esperava uma vida média limitada, sendo a super-expansão e as contradições internas as causas do seu malogro.» A ver vamos, se o tempo não nos escassear.

Hans Magnus Enzensberger, «El gentil monstruo de Bruselas o Europa bajo tutela», Anagrama, 2012, 109 páginas