Inesquecíveis prepotências (Livros proibidos no Estado Novo)

António Rego Chaves

Persistentes tentativas de branqueamento do despótico regime salazarista-caetanista aconselham a muitos uma (re)leitura atenta do catálogo da exposição «Livros Proibidos no Estado Novo», mostra organizada pela Assembleia da República em 2004 por ocasião do 30.º aniversário do 25 de Abril. Como lembrou Oliveira Marques na sua «História de Portugal», durante a Ditadura, «embora a censura não se aplicasse aos livros, estes podiam ser frequentemente retirados do mercado por ordem das autoridades. Neste caso, tanto autores como editores podiam estar sujeitos a castigo».

Salientou o malogrado historiador que em 1972 – e já extintas as esperanças despertadas em alguns pela chamada «Primavera marcelista» –, um despacho do então ministro do Interior, Gonçalves Rapazote, estabelecia que, «tendo-se verificado o aumento substancial de publicações que atentam contra a sociedade e a ordem e ofendem os bons costumes, deverá a Direcção Geral de Segurança dedicar um cuidado particular» à relação de livros «suspeitos – pornográficos ou subversivos» e «impedir efectivamente a impressão de textos susceptíveis de proibição». A PIDE-DGS era também encarregada, não apenas de organizar «brigadas especializadas para este serviço», como de assegurar «o serviço de vigilância de entrada no País de publicações pornográficas e suspeitas» e «a visita regular às livrarias de todo o País para sequestro de livros, revistas e cartazes suspeitos e para apreensão dos que já estão proibidos». Tudo em nome da «defesa dos bons costumes, da ordem social e da ordem pública».

Os resultados não se fizeram esperar: refira-se, a título de exemplo, que o relatório do Conselho de Leitura relativo a Janeiro de 1974 revelava que tinha sido «considerada inconveniente» a circulação de 138 títulos, entre os quais «Emigração e Crise no Nordeste Transmontano» (Modesto Navarro), «Sobre o Plano e o Planeamento em Portugal» (António Sérgio), «Progresso na Liberdade» (Miller Guerra), «Novos Contos do Gin» (Mário-Henrique Leiria), «Continuidade – Glosas ao Discurso Eleitoral do Prof. Marcelo Caetano» (Raul Rego), «Poemas de Natal» (Felicidade Alves), «A Estrutura Agrária Portuguesa» (Henrique de Barros) e «Ano de Eleições» (José Magalhães Godinho), além de dezenas de livros franceses, do «Le Monde Diplomatique» de Novembro de 73 e da «Seara Nova» de Dezembro do mesmo ano.

Surdos e cegos – surdos, até, à escassa dúzia de vozes que na Assembleia Nacional havia clamado por alguma liberdade, cegos em relação ao que de facto se passava em Portugal e no resto do Mundo – os governantes do «Estado Novo» pareciam seguros de que, proibindo a divulgação de outras ideias que não as suas, impediriam o País de entender que o seu futuro poderia viver algo diferente de uma opressiva «evolução na continuidade». Gonçalves Rapazote, o autor do despacho acima referido, constituía, aliás, um excelente exemplo da «linha dura», sendo, no dizer de Daniel de Melo, «um dos principais responsáveis pela vaga repressiva de 1971-1973.» Neste contexto, a «ala liberal», corporizada, entre outros, por Pinto Leite, Sá Carneiro, Pinto Balsemão, Miller Guerra ou Magalhães Mota, atacada no odiento pasquim «Agora» por fanáticos salazaristas como Goulart Nogueira, Nogueira Pinto ou José Júdice, incapazes de perspectivar sem temor o ressurgir da Democracia, estava a priori condenada à derrota.

Percorra-se o índice de autores de língua portuguesa inseridos no rol dos proscritos: Manuel Alegre, Jorge Amado, Henrique de Barros, Sottomayor Cardia, Papiniano Carlos, Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, Orlando da Costa, Vergílio Ferreira, Tomás da Fonseca, José Magalhães Godinho, Soeiro Pereira Gomes, Manuel Teixeira-Gomes, Bento Gonçalves, Cunha Leal, Pacheco Pereira, Cardoso Pires, Alves Redol, Afonso Ribeiro, Aquilino Ribeiro, António de Almeida Santos, António José Saraiva, António Sérgio, Antunes da Silva, Mário Soares, Castro Soromenho, Luandino Vieira, Salgado Zenha (responsável, com Sousa Tavares, Jorge Sampaio, José Vasconcelos Abreu e José Vera Jardim, pelo livro «O Caso da Capela do Rato no Supremo Tribunal Administrativo»). Falando dos de língua estrangeira, lá estavam os nomes sempre amaldiçoados de Althusser, René Andrieu, Boukharine, Karl Kautsky, Annie Kriegel, Lenine, Rosa Luxemburgo, Maiakovski, Ernest Mandel, Mao, Marx, Pietro Nenni, Alan Paton, Joan Robinson, Sartre, Staline, Trotsky, Peter Weiss… E também os de outra espécie de «transgressores», como o sexólogo Fritz Kahn, Nabokov («culpado» por «Lolita», claro!), Vasco Pratolini, Roger Vailland…

Agrupando os livros proibidos, as organizadoras apresentam-nos os seguintes temas: contestação política, presos políticos, colonialismo, conflitos externos, política económica, reforma agrária, história, religião, ideologia socialista, pobreza, condições de vida, desigualdades sociais, moral e costumes, emancipação da mulher, erotismo, sexualidade. Nada ou quase nada escapava ao zelo intelectual dos nossos torquemadas.

Arrepiantes, sobretudo para quem os acompanhou na época, são alguns dos debates ocorridos na Assembleia Nacional transcritos neste catálogo, onde sobressaem apartes e tiradas patrioteiras de alguns indefectíveis salazaristas póstumos, como os deputados «vitalícios» Casal-Ribeiro, «legionário da primeira hora», e o não menos legionário almirante Henrique Tenreiro, insaciável «tubarão» do regime de Salazar e Caetano. Quando se confunde a lamentável arrogância de primeiros-ministros como Cavaco Silva ou José Sócrates e de alguns dos seus serventuários com prepotência, decerto não se têm em mente figuras como as dos presidentes do Conselho do Estado Novo e, mesmo, de um Rapazote, de um Casal-Ribeiro ou de um Tenreiro. Caso contrário, talvez se utilizasse um termo menos conotado com a ditadura que esmagou Portugal durante 48 anos. Aliás, «graças a Deus», as «democráticas» maiorias absolutas, ao invés das tiranias, podem – e talvez devam, mesmo –, cair de quatro em quatro anos...

«Livros Proibidos no Estado Novo», Assembleia da República, organização de Manuela Ferrão, Susana Oliveira e Teresa Fonseca, 2005 (2.ª edição), 205 páginas