Regresso ao «umbigo do mundo» (Montparnasse)

António Rego Chaves

Jean-Paul Caracalla, autor de numerosos livros sobre a capital francesa («Vivre Paris», «Vagabondages littéraires à Paris», «Saint-Germain-des-Prés», «Le Paris de Jacques Prévert», «Les Champs-Elysées»), apresenta-nos agora em livro de bolso – mas sem as belas imagens da edição de 1997 – um aliciante texto consagrado a Montparnasse. Lê-se de um fôlego este «bouquin» que nos fala de um dos mais célebres bairros da cidade considerada por alguns – temo que cada vez menos –, o «umbigo do mundo», decerto mais pelos fantasmas dos escritores e dos artistas que ainda a povoam do que pelo seu presente pós-gaullista, simbolicamente assinalado pelos 210 metros da inóspita Tour Montparnasse ou pelo agressivo intestino externo do Centro Pompidou.

O fim do século XIX e o princípio do século XX significaram, não apenas a «derrota» da margem direita do Sena e de Montmartre, abandonados por poetas, pintores e escultores, como o início da idade de ouro de Montparnasse, das suas tertúlias, da sua vida literária e artística, do seu cosmopolitismo. Franceses e estrangeiros de todo o mundo ali foram definir rumos para a sua criatividade, a sua ânsia de viver, a sua sede de concretizar os projectos culturais que dariam sentido ao seu génio e ao seu talento.

Paul Fort será dos primeiros a reanimar, em 1903, a esplanada da célebre «Closerie des Lilas», situada na fronteira entre Montparnasse e o Quartier Latin, já antes frequentada por Chateaubriand, Baudelaire, Ingres, Verlaine, Gautier, os Goncourt e Zola. O poeta organizará ali, todas as terças-feiras, leituras de poesia cujo êxito será imediato. Max Jacob, Paul Léautaud, Alfred Jarry, Léon-Paul Fargue, Jean Giraudoux, André Salmon, Apollinaire, André Gide, Francis Carco e Charles Morice são apenas alguns dos nomes mais sonantes que contribuíram para criar a lenda deste autêntico viveiro da actividade cultural parisiense dos primeiros decénios do século passado.

Em 1925 verifica-se um dos mais ruidosos incidentes alguma vez ocorridos neste aprazível lugar de convívio de intelectuais, com entrada em cena dos gendarmes. Durante um banquete de homenagem ao poeta Saint-Pol-Roux, os surrealistas resolvem replicar a Paul Claudel que, dias antes, numa entrevista, os acusara de pederastia: «Escrevei, rezai e babai-vos; reclamamos a desonra de vos ter chamado de uma vez por todas pedante e canalha.» Mas o pior estava para vir: sentindo-se provocado pelas declarações de Madame Rachilde, mulher do director do Mercure de France, que presidia à mesa de honra e declarara ser «intolerável» o casamento entre um francês e uma alemã, André Breton, amigo do pintor alemão Max Ernst, escolhe o momento em que a senhora usa da palavra para emitir sonoros «vivas» à Alemanha. Michel Leiris grita, frenético, abrindo uma das janelas do edifício: «Abaixo a França! Abaixo a França!», quase vindo a ser linchado pela multidão que entretanto se juntara na rua, enquanto Robert Desnos se baloiça pela sala agarrado a um reposteiro e Louis Aragon procura o poeta e historiador de arte Camille Mauclair para lhe assentar um sonoro par de tabefes. Breton relatará o inesperado final do episódio: «O humor ditou que, na confusão geral, fosse Rachilde, então no cúmulo da agitação, que fosse presa.»

A partir de 1910, assiste-se a uma notável explosão artística: o Douanier Rousseau expõe no Salão dos Independentes, impõem-se os nomes de Rouault, Kandinsky, Duchamp, Léger, Picabia, Marinetti, Diaghilev, Chagall. Mas, a partir de Agosto de 1914, a vida em Montparnasse muda de um dia para o outro. Cendrars, Kisling e Kupka ingressam na Legião Estrangeira, Braque, Derain, Léger, Mac Orlan, Salmon, Carco e Apollinaire são chamados a combater. Escapam aos desastres da guerra Modigliani, Ehrenbourg e Diego Rivera, por razões de saúde. Brancusi e Picasso ficam em Paris, Foujita estará em Londres. No bairro que era o dos artistas permanecem apenas jovens estrangeiros oriundos de países neutrais. Quanto a Trotski, é expulso de França pelas autoridades policiais. Kisling e Braque serão feridos, Léger gaseado, Cendrars ficará sem o braço direito. Apollinaire, atingido em combate e submetido a uma trepanação, morrerá em 1918, vitimado pela gripe espanhola.

Com o fim da Grande Guerra voltarão a encher-se de artistas plásticos, escritores, revolucionários e reaccionários russos os «cafés» de Montparnasse: o Dôme, o La Coupole, o La Rotonde. Ernest Hemingway não esconderá, em 1922, a sua ira em relação à «fauna» norte-americana que vem desaguar neste último, que aliás localiza no Quartier Latin, chegando a afirmar que «os artistas de Paris que produzem obras válidas têm horror e desprezo pela balbúrdia do La Rotonde». Era ignorar, no mínimo, as presenças assíduas de Soutine, Kisling, Derain, Vlaminck, Salmon ou Max Jacob…

Le Select, inaugurado em 1924, foi o primeiro café de Montparnasse a estar aberto durante toda a noite. A «Lost Generation» assenta aí arraiais, tendo Hemingway e Scott Fitzgerald como santos padroeiros. Outras figuras de destaque: Henry Miller, Ezra Pound, Gershwin, Joyce, Faulkner, Dos Passos, Wilder, T.S. Eliot. O «crash» de Wall Street, em 1929, põe fim a este desfile de celebridades, vencidas pela queda do dólar. Mas, entre as duas guerras mundiais, Sylvia Beach terá a honra de ser a primeira a lançar o «Ulisses» de Joyce, proibido na Grã-Bretanha e nos EUA, enquanto Gertrud Stein e Alice B. Toklas farão publicar as suas próprias obras e o casal Harry e Caresse Crosby dará à estampa Joyce, Kay Boyle ou D. H. Lawrence. Quanto a Nancy Cunard, ficar-se-lhe-ão a dever requintadas edições de Ezra Pound, Iris Tree e Lewis Carroll.

Recordando, nostálgico, o que foi esse mundo irremediavelmente perdido, o autor impõe-nos a visita a alguns eminentes inquilinos do Cemitério de Montparnasse, três dos quais conhecidos de todos, pelo menos de nome: Baudelaire, Sartre, Beauvoir.

Porque não voltar a Paris nesta Primavera, aconchegado pelo(s) livro(s) de Caracalla?

Jean-Paul Caracalla, «Montparnasse, l’âge d’or», La Table Ronde, 2005, 175 páginas