Respeitar Camus

António Rego Chaves

Referindo-se ao autor de «O Estrangeiro», quando este recebeu o Prémio Nobel da Literatura, em Outubro de 1957, num breve texto intitulado «Quero falar de um amigo», escreveu o poeta René Char: «Há mais de dez anos ligado a Camus, muitas vezes a seu respeito a grande frase de Nietzsche reaparece na minha memória: ‘Sempre pus nos meus escritos toda a minha vida e toda a minha pessoa. Ignoro o que podem ser problemas puramente intelectuais.’ Eis a razão da força de Albert Camus – intacta, reconstituída à medida – e da sua fraqueza – continuamente agredida.»

Essa força e essa fraqueza poderão hoje ser reavaliadas, talvez ainda não com um distanciamento ideal, embora 46 anos após a sua morte, na altura em que as obras completas do escritor começaram a ser reeditadas, por ordem cronológica, em quatro volumes, pela prestigiada colecção «Bibliothèque da la Plêiade» – incluindo desta vez «Uma Morte Feliz», «O Primeiro Homem», os «Cadernos», muitos textos nunca publicados em livro (artigos, conferências, entrevistas) e escritos póstumos. Ao consagrar o «dossier» de Maio a Camus, decerto «Le Magazine Littéraire» terá pensado, não apenas nos fieis leitores de tudo o que antes foi dado à estampa, como naqueles que conhecem apenas um ou outro título. Mas, diga-se desde já, poderíamos esperar bem mais em matéria de análise de textos tão importantes como «O Mito de Sísifo», os «Cadernos» ou as «Actualidades», que inexplicavelmente se encontram pouco mais do que mencionados pelos autores das duas dezenas de prosas que integram esta apresentação de um dos grandes intelectuais franceses do século XX.

Uma preocupação parece dominante entre os «fazedores de opinião» que colaboram na iniciativa, desde Alain Finkielkraut e Olivier Todd a outros nomes sonantes como Jean Daniel ou Bernard Fauconnier: opor Camus a Jean-Paul Sartre ou, até, colá-lo «à outrance» a Raymond Aron. Transplantando para o presente polémicas do passado e dissecando o passado à luz do presente, corre-se, como é bem sabido, um elevado risco de cair no anacronismo histórico. Com a agravante de, nos tempos que correm, já muito poucos saberem que ambiente político se vivia em plena Europa nos anos 50 do século XX, não fazendo qualquer sentido aplicar a essa época os suspeitos «critérios de verdade» hoje quase unanimemente aceitos pela generalidade asfixiante dos europeístas bem-pensantes. Em plena Guerra Fria, extremado o confronto entre capitalismo e comunismo, os tempos eram, de facto, outros, e intitular-se, então, comunista ou anticomunista, marxista ou antimarxista, não tinha, sem sombra de dúvida, os mesmos custos ou lucros que hoje tem. A mais elementar honestidade imporia que tal estivesse explícito na argumentação dos zelosos ideólogos que ainda se dão ao trabalho de discutir quem tinha razão, se Camus, se Sartre, se Aron. Parece hoje evidente que todos tinham razão ou que nenhum tinha razão – pois cada um deles, bem ou mal, com ou sem sólida justificação, de boa ou má fé, lutava por um destino à sua exacta medida e à medida exacta do futuro que então sonhava para a Humanidade.

Jeanyves Guérin sintetiza, involuntariamente, algumas das graves deficiências deste «dossier», ao esforçar-se por «vender» a singela imagem de um Camus «professor de civismo democrático». A classificação não é inocente, porque as referências invocadas são Karl Popper, Hannah Arendt e Raymond Aron, suportes já clássicos do actual «pensamento único» anticomunista. O ensaísta não se esquece de recordar, no entanto, a adesão de Camus à Resistência, escrevendo: «‘Cartas a um Amigo Alemão’ dá as razões do seu empenhamento. À mística nacionalista e imperialista dos nazis, opõe, não uma outra mística nacionalista, mas a razão e a cultura, uma ética humanista da justiça e da liberdade e uma aposta europeia. A cultura democrática da Resistência, da qual Camus é o eloquente arauto no ‘Combat’, depressa será captada e falsificada pelos comunistas e abafada pela vulgata marxista do pós-guerra.»

Depois deste banal exercício retórico sobre as ideias políticas do ensaísta de «O Homem Revoltado», aliás comunista entre 1935 e 1937, de evocar a sua «firme condenação do terrorismo, da tortura e dos campos soviéticos», de sublinhar a sua convicção de que «a destruição da economia capitalista não traz o paraíso à terra», metamorfoseia-o, num passe de mágica, em arauto do «fim das ideologias», embora conceda que mais tarde ele tomaria partido pela «utopia relativa do socialismo democrático». Estará tudo dito sobre o uso da violência, estará alguma coisa explicada acerca da dilacerante «paralisia» que impediu este francês nascido em Mondovi e educado em Argel de tomar partido durante a Guerra Colonial da Argélia? Ou seria lícito usar da violência para libertar a França do jugo nazi – como fez, com toda a legitimidade, a Resistência francesa –, ao passo que deveria ser considerado ilícito usar da violência para libertar a Argélia do jugo francês, como fez, também com toda a legitimidade, a Frente de Libertação Nacional (FLN) argelina? Ainda que correndo o risco de ser mais camusista que o próprio Camus, Jeanyves Guérin, não tendo resposta para nos dar, alvitra que aquele «não se sentia obrigado a dar a sua opinião sobre todas as coisas e que escolheu cuidadosamente as causas que defendia: «uma nova ordem internacional, a construção da Europa, Mendès France, a trégua civil.» Sabe a pouco para quem detectou no intelectual a procura de uma «terceira via» entre capitalismo e comunismo, entre liberdade e igualdade, entre colonizador e colonizado. Sabe a pouco para quem não põe em dúvida a probidade de alguém que participou, e nem sempre muito perplexo, nas grandes polémicas do seu tempo. Sabe a pouco, enfim, para quem considera só ser possível respeitar por inteiro o cidadão Camus reconhecendo-lhe, não só toda a sua força, como toda a sua fraqueza e todas as suas dilacerantes contradições.

Le Magazine Littéraire, «Albert Camus – Penser la révolte», Maio de 2006, 98 páginas