A ironia enquanto arma letal (Antero e Sena Freitas)

António Rego Chaves

Em boa hora Luís Machado de Abreu e José Eduardo Franco comentaram e anotaram a «Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra a chamada Opinião Liberal» (1865), de Antero de Quental, e «Contra os Jesuítas», do Padre Sena Freitas (1881). Como salienta o especialista em semiótica José Augusto Mourão, os dois textos têm em comum o facto de os seus autores terem optado pela ironia. Mas em que consiste a ironia? Explica: «Numa perspectiva semiótica e seguindo neste passo Per Arage Brandt, na mentira, o sujeito diz P para que o destinatário pense P, enquanto o sujeito pensa não-P. Na ironia, o sujeito diz igualmente P embora a pensar não-P, mas para que o destinatário pense não-P como ele. O acordo visado vai contra aquilo que literalmente se diz. A diferença intencional é a única ‘ratio’ daquilo que distingue a ironia da mentira.» Assim sendo, a «defesa» de Pio IX assinada por Antero é, em boa verdade, um «ataque» a Pio IX, ao passo que o «contra» os jesuítas de Sena Freitas só pode ser interpretado como um «a favor» dos jesuítas.

No estudo introdutório que dá o título ao livro – «Dois Exercícios de Ironia» – Luís Machado de Abreu e José Eduardo Franco lembram que Antero «reagira com ímpeto à publicação, em 8 de Dezembro de 1864, da encíclica ‘Quanta Cura’, seguida do ‘Syllabus errorum’». No que se refere a Sena Freitas, «respondia na sua intervenção à fase de intensa militância anticlerical dinamizada por republicanos que se sentiam confortados com os progressos obtidos em França pelo laicismo da III República e pelo afastamento dos jesuítas, em 1880».

Interessante é notar, como fazem os dois comentadores, que Sampaio Bruno, António Sardinha, Hernâni Cidade ou Joaquim de Carvalho «levaram as coisas à letra, e nem sequer chegaram a suspeitar do carácter irónico» da «Defesa da Carta Encíclica». Não menos curioso é o seguinte pormenor da recepção do texto do Sumo Pontífice em Portugal: «não obstante a recusa de Beneplácito Régio à publicação oficial dos documentos papais na sua totalidade, dessa divulgação integral se ocuparam, desde o início de Janeiro de 1865, tanto ‘O Amigo da Religião’, jornal católico, como ‘O Portuguez’, jornal liberal.» Como seria previsível, os eclesiásticos fizeram a apologia do documento, ao passo que os liberais não se inibiram de o criticar com dureza, agitando as suas estimadas bandeiras da liberdade de pensamento e do progresso.

O poeta não estava, no entanto, de acordo com os católicos liberais. E isto porque considerava que estes, por razões de coerência, só poderiam, seja aceitar os ensinamentos papais e permanecer católicos, seja rejeitá-los e deixar de ser católicos. Não deixa de causar estranheza que Antero não tenha descortinado que este aparente dilema poderia ser superado pelo diálogo – como o tempo viria a provar, se bem que apenas um século depois, precisamente em 1965, no final do Concílio Vaticano II.

A verdade é que, para o intelectual açoriano – ao contrário do que pensava Amorim Viana, que distinguia a «religião de Cristo» da «religião do Papa» –, não era possível conciliar Igreja e liberdade. Daí que tenha proclamado: «Dum lado a Igreja e do outro a liberdade. Submetei-vos – ou rebelai-vos!» Sublinhe-se que o «Syllabus», verdadeiro paradigma de intolerância ultramontana, condenava a democracia, a liberdade de religião, a separação da Igreja e do Estado, o racionalismo, o socialismo e qualquer forma de «modernismo», além de veicular uma rígida ideologia reaccionária em relação aos direitos humanos e ao ecumenismo. Mais tarde, no Concílio Vaticano I (1869-1870), o Papa imporá o dogma da infalibilidade quando fala «ex cathedra» em matéria de fé e de moral, fecho da arrogante abóbada do seu assumido autoritarismo.

Quanto ao Padre Sena Freitas, o panfleto «Contra os Jesuítas» constitui, na opinião dos dois comentadores, «uma diatribe sob a forma de apelo veemente dirigido a governantes, incautos e adormecidos, para que vejam como é efectiva, actuante e perigosa a presença dos filhos de Inácio de Loiola, que haviam sido desterrados do país». Os seus «crimes» fundamentais teriam consistido em actuar como inimigos da liberdade e fomentar o obscurantismo, realizando missões religiosas e ensinando em colégios. «Cogumelos sociais do nosso país», impunha-se arrancar o mal pela raiz, «écraser l’Infâme» (Voltaire), ou seja, a Igreja Romana, fonte de um dogmatismo tão imobilista quanto intolerante, inimiga visceral do liberalismo. Escrevia o clérigo ser urgente expulsar os jesuítas, «esses comunistas negros», «pondo por obra o decreto dos tempos do absolutismo que imortalizou o insigne Marquês de Pombal, o herói de Belém, de Palhavã e do Tribunal da Inconfidência, o benemérito verdugo de centenares de jesuítas afundidos no Oceano ou falecidos num doloroso degredo». Salta à vista aonde queria chegar: apontava um dedo acusador – mas o alvo não era decerto a Companhia de Jesus. Se «criminosos» havia, que os procurassem, não nas celas dos conventos, mas entre os políticos, de Carvalho e Melo a Joaquim António de Aguiar.

Completam esta obra, além dos citados textos de Antero de Quental e Sena Freitas, duas dezenas de gravuras acompanhadas de comentários interpretativos, «produzidas para traduzir os argumentos anticlericais e antijesuíticos de forma caricatural.» Como diz Florbela Gomes: «A caricatura não escolhe idades nem classes sociais. Ela é um instrumento privilegiado para a alfabetização das classes pobres e democratização da sociedade, pois veicula os novos ideais de maneira que a todos chega.» Rafael Bordalo Pinheiro, Simões Júnior e Leal da Câmara são alguns dos mais reputados artistas que animam estas corrosivas páginas de crítica à Igreja Católica e aos seus sacerdotes. A ironia assume aqui, uma vez mais, o estatuto de temível arma letal cujos efeitos não poderão ser esbatidos pela retórica do contraditório. Porque, como se sabe, não basta que bem pregue Frei Tomás, é necessário confrontar o que ele diz com o que ele faz...

«Dois Exercícios de Ironia», Luís Machado de Abreu e José Eduardo Franco, Prefácio, 2005, 145 páginas