Musil como filósofo (Jean-Pierre Cometti)

Nem «sábio», nem «escritor»

António Rego Chaves

O austríaco Robert Musil (1880-1942) realizou, ao escrever «O Homem sem Qualidades», a imensa tarefa de nos legar, na primeira metade do século XX, um imponente espelho da cultura europeia da sua época. Centrado na Viena do Império Austro-Húngaro, aonde tantos saberes nasciam e afluíam, transmite-nos a imagem do perplexo herói dos tempos modernos, «o homem sem qualidades». Homem em mudança num mundo em mudança, homem sempre disponível para o expectável e para o possível, sem ideologia que não seja a de não fazer sua nenhuma ideologia.

Robert Musil não escreve apenas em defesa deste conjuntivo homem SEM qualidades, pronuncia-se também, satirizando-os, contra os homens COM qualidades – ou seja, aqueles que, aparentemente seguros de si, de suas ideias e de suas crenças, se banham num tranquilo e estagnado oceano de certezas definitivas acerca de um «Eu» imutável e de um mundo eterno. Embora a sua obra seja bem mais vasta («As Perturbações do Pupilo Törless», «Diários», «Ensaios», etc.) é o inacabado e em rigor inacabável romance/ensaio «O Homem sem Qualidades» que se nos impõe como prova cabal da sua grandeza como narrador e criador de prosa poética.

Jean- Pierre Cometti, reputado especialista de estética, de Wittgenstein e de Robert Musil, apresenta-nos neste estudo um conceito fluido de filosofia e de literatura, recusando-se a demarcar fronteiras bem definidas entre ambas: «Literatura, filosofia, eis pelo menos uma obra que se dirige tanto à inteligência quanto à sensibilidade – e reciprocamente –, uma obra que decerto não possui a marca de fábrica das filosofias devidamente seladas, não mais do que os sinais reconhecíveis do ‘literário’ ou do ‘poético’, mas que nos ajuda a compreender o que quer dizer pensar, a admitir que nem a vida nem o conhecimento se detêm no limiar dos nossos hábitos pessoais ou históricos, e que, ao mesmo tempo, partilha com a arte e a poesia a faculdade de mobilizar os recursos do imaginário ao serviço de uma renovação em profundidade da nossa experiência emocional e cognitiva.»

A opinião de Musil sobre as filosofias a que se chamou «devidamente seladas» e seus protagonistas não era, por certo, das mais lisonjeiras: «Os filósofos são seres violentos que, não dispondo de um exército, submetem o mundo e o encerram dentro de um sistema. Provavelmente também é esta a razão pela qual as épocas de tirania viram nascer grandes figuras filosóficas, ao passo que as épocas de democracia e de civilização avançada não conseguem produzir uma só filosofia convincente, pelo menos na medida em que o podemos avaliar pelas queixas que se ouvem constantemente a tal respeito. Por isso a filosofia a retalho é praticada hoje com tão aterradora abundância que apenas nas casas comerciais podemos receber alguma mercadoria sem nos darem como brinde qualquer coisa acerca da concepção do mundo. Quanto à filosofia por grosso, reina uma desconfiança notável. Esta chega mesmo a ser considerada impossível.»

O autor de «O Homem sem Qualidades» (obra da qual só muito recentemente saiu uma tradução em Portugal que se aproxima da dimensão do texto alemão), por intermédio das suas duas personagens principais, Ulrich e Agathe, desenvolve um tema/interrogação fundamental: «Como viver?» Ou seja, nas palavras de Jean-Pierre Cometti, «como conseguir viver com autenticidade o que se vive, isto é, dar um significado pessoal às nossas experiências»? Neste contexto, não seria difícil considerar Robert Musil como um «filósofo da existência» – mas filósofo sem «certificado de garantia», claro está, olhado de soslaio tanto por encartados filósofos e literatos do Império Austro-Húngaro (a Cacânia) como por académicos europeus de ontem e até de hoje, que o relegariam para a duvidosa estirpe dos «simples ensaístas». Estava bem consciente disso: «O ensaísta, que passa por uma espécie de calaceiro aos olhos dos sábios e alimenta a sua substância com aquilo que eles consideram os seus próprios resíduos, passa geralmente aos olhos dos criadores por uma espécie de filho ilegítimo.»

Mas o ensaísta que a todo o momento intervém no texto do romance/ensaio «O Homem sem Qualidades» sabia de sobejo como argumentar com os seus eventuais detractores, porventura «imaculados» filósofos/catedráticos sem conhecimento realmente vivido da existência humana e não menos «imaculados» criadores literários infectados por um epidémico défice em matéria de ideias: «Um ensaio não é a expressão provisória ou acessória de uma convicção que num outro momento melhor se poderia elevar à categoria de verdade, mas que poderia também revelar-se um erro (a esta espécie pertencem apenas os artigos e tratados com os quais os eruditos nos brindam como se fossem ‘dejectos da sua oficina’); um ensaio é a forma única e inalterável que um pensamento decisivo dá à vida interior do homem. Nada é mais estranho ao ensaio do que a irresponsabilidade e o inacabamento das inspirações que relevam da subjectividade; no entanto, as noções de ‘erro’ e de ‘verdade’, de ‘inteligência’ ou de ‘loucura’, não são aplicáveis a estes pensamentos submetidos a leis não menos rígidas do que aparentemente subtis e inefáveis. Foram bastante numerosos esses ensaístas, esses mestres da flutuação interior da vida; não haveria qualquer interesse em os nomear; o seu domínio situa-se entre a religião e a ciência, entre o exemplo e a doutrina, entre o ‘amor intellectualis’ e o poema; são santos com ou sem religião e por vezes, também, simplesmente homens desviados para esta ou aquela aventura.»

Uma pergunta de Ulrich sintetiza melhor do que qualquer erudita resposta possível o papel que o ensaísta desempenha perante si e perante os seus leitores: «Um homem que busca a verdade faz-se sábio, um homem que pretende expandir a sua subjectividade faz-se talvez escritor; mas que há-de fazer um homem que busca qualquer coisa situada entre estas duas?»

Jean-Pierre Cometti, «Musil philosophe», Seuil, 2001, 172 páginas