O enigma de Saraiva

António Rego Chaves

Interpelei António José Saraiva na altura própria, corria o ano de 1970, em plena ditadura caetanista. Lera na biblioteca da Faculdade de Letras tantas páginas quantas o tempo mo permitira da sua hoje esgotada «História da Cultura em Portugal», então inacessível à minha bolsa: o texto apaixonara-me. No «Comércio do Funchal» sustentei, não obstante, que as suas teses sobre a Guerra do Biafra não possuíam consistência em termos de análise política – e sugeri mesmo que AJS não sabia em que «jogo» se estava a meter num Portugal para si indecifrável a partir do exílio. Quem tinha razão? Ele, o respeitado autor do «Dicionário Crítico de algumas ideias e palavras correntes», ou nós, anónimos defensores da Nigéria? Tratar-se-ia «só» de um problema de petróleo e «Guerra Fria», ou o cerne da questão residia, como pretendia AJS, na preservação da identidade nacional do povo ibo? A sua resposta não me convenceu e, a partir de então, deixei de o contar como membro da minha tribo e a tomá-lo por um adversário ideológico. Nós execrávamos os EUA, AJS já não.

Sabíamos que estivera em França no ano de 1968 e lemos entretanto «Maio e a Crise da Civilização Burguesa». O ex-estalinista passara a ser anti-soviético, anticomunista, antimarxista. Pasmados, «aprendemos» no seu novo livro que o marxismo considerava a cultura como uma «supra-estrutura» (sic) ou um «epifenómeno». Perguntámo-nos: «Em que obra de Marx encontrou António José Saraiva tal concepção?» Nunca obtivemos resposta, simplesmente porque Marx jamais veiculou tal enormidade.

Este intróito impõe-se para o leitor desprevenido que aborde a recente reedição do Livro I de «A Cultura em Portugal», obra onde o «Prólogo», escrito pelo autor em 1981, nos avisava de que abandonara «a doutrina marxiana das supra-estruturas» que inspirara a «História da Cultura em Portugal» editada pelo Jornal do Foro a partir de 1950. E interrogava: «Como é possível estabelecer o nexo necessário entre a economia portuguesa do século XVI e, por exemplo, Camões? E que explicação socioeconómica há para o facto de Fernando Pessoa se ter manifestado no primeiro terço do século XX em Portugal?» Posta assim a questão, dir-se-ia que AJS queria demonstrar o que de nenhuma demonstração carecia: ou seja, que Camões não é consequência necessária da economia portuguesa do século XVI, tal como Pessoa não é consequência necessária das condições socioeconómicas dos três primeiros decénios do século XX. Outra coisa seria pretender que Camões teria sido possível no século XX, ou Pessoa no século XVI. Convenhamos que o disparate não seria de menor monta e que não se pode, de um dia para o outro, num passe de mágica, meter o historicismo na gaveta.

E não soaria também estranho que AJS, na ânsia de eliminar vestígios da sua passada ligação ao materialismo histórico, afirmasse em 1981 que se entende melhor Picasso confrontando-o com as pinturas pré-históricas de Altamira do que com os pintores académicos europeus seus coetâneos – mas porquê só com os académicos? –, como se fosse imaginável explicar a obra do malaguenho sem Cézanne, Braque ou Juan Gris?

No I volume da «História da Cultura em Portugal» refundida, isto é, «aliviada» de «borbulhas» marxistas, um capítulo escapou – a nosso ver felizmente – à reformulação de António José Saraiva, surpreendido pela morte em 1993. Nele, de acordo com Leonor Curado Neves, responsável pela introdução, «é esboçado um quadro conjuntural de carácter inegavelmente sociologizante e redutor». Adverte a zelosa guardiã do templo, no tom de quem reserva o texto sacrílego apenas a adultos com sólida formação moral: «Sugere-se ao leitor que o leia criticamente, lembrando-se que o pensamento nele contido só foi de António José Saraiva numa fase passageira da sua vida.» Mero «pecadilho» juvenil? Mas será lícito fazer passar o autor, que terminou a «História da Cultura em Portugal» com mais de 40 anos, isto é, em plena maturidade, por um jovem arrebatado que adere sem discernimento a uma ideologia «extremista», atitude que lhe custou a expulsão do ensino, a prisão pela PIDE e o exílio? Ou seria lícito considerar as muitas contradições em que depois incorreu – como, aliás, mais de uma vez honestamente reconheceu –, um produto da degenerescência das suas fulgurantes faculdades intelectuais? Recusamos ambas as lamentáveis «habilidades».

Ainda uma palavra sobre o repúdio do marxismo por AJS. Atente-se nestas suas frases, de uma entrevista de 1982: «A primeira forma que o meu inconformismo assumiu foi o cristianismo. O Evangelho contém uma semente de protesto; várias revoluções camponesas, sociais, foram feitas em seu nome. A mensagem evangélica permanece e é sempre fecunda: as instituições eclesiásticas é que podem não lhe ser fiéis. Notava uma constante oposição entre a mensagem evangélica e a sua expressão institucional, a Igreja Católica.» (…) «A solução de Marx pareceu-me inteligente e racional: para todos terem propriedade, ninguém poderia tê-la. Acontece que a versão leninista-estalinista do marxismo não aplicou esta doutrina. Pela simples razão de que ela é inaplicável.» Ou seja, AJS, assim como se afastou do «cristianismo real», repudiou o «socialismo real». Mas por que motivo não o fascinou o «socialismo ideal» «marxiano», tal como o fascinou o «cristianismo ideal» franciscano? Apenas porque considerou a utopia de Marx «inaplicável», embora a utopia de Francisco de Assis não fosse menos «inaplicável»? O enigma aqui fica – decifre-o quem puder.

A terminar, saliente-se que se encontra quase concluída a publicação da nova «História da Cultura em Portugal». Estão editados os seguintes títulos: «A Cultura em Portugal – Teoria e História» (dois volumes); «O Crepúsculo da Idade Média em Portugal»; «Renascimento e Contra-Reforma» e «Gil Vicente, Reflexo da Crise». Faltam os dois últimos: «As Navegações e as Origens da Mentalidade Científica» e «O Humanismo em Portugal». Dado que o «vermelho» original não será reeditado, por decisão do autor, contemplemos esta sua empalecida sombra, à guisa de prémio de consolação…

António José Saraiva, «A Cultura em Portugal – Teoria e História», Livro I, 3.ª edição, 2007, 240 páginas