Hermann Broch («A Morte de Virgílio», 2.º vol.)

Broch, Virgílio e a «Eneida»

António Rego Chaves

No ensaio que lhe consagrou na obra «Homens em Tempos Sombrios» (também editada em Portugal pela Relógio d’Água), afirma Hannah Arendt que Hermann Broch «estava inteiramente convencido, nos últimos anos da sua existência, do primado do conhecimento sobre a literatura, da ciência sobre a arte». Acrescenta que, «no fim da vida, chegou a persuadir-se de que havia uma espécie de prioridade, senão mesmo de primado, de uma teoria geral do conhecimento em relação à ciência e à política». E conclui a autora de «As Origens do Totalitarismo» (texto publicado entre nós pela Dom Quixote) que, n’«A Morte de Virgílio», a «Eneida» «deve ser queimada para bem do conhecimento, sendo esse conhecimento depois sacrificado à amizade entre Virgílio e o imperador e às exigências políticas eminentemente práticas da época que condicionavam essa amizade».

Como releva Hannah Arendt, as implicações destes desenvolvimentos seriam depois integralmente assumidas pelo pensamento ensaístico de Hermann Broch, que se afastou daquilo que denominou «atitude lírica» e passou a sustentar que «a literatura é apenas impaciência por parte do conhecimento», opinando também que a «missão extraordinária» da literatura da sua época seria «submeter todo o estético ao poder do ético».

Nos primeiros decénios do século XX, nessa «metrópole do vazio ético» que é Viena, Hermann Broch concebe um Virgílio «pré-cristão», no ano 737 depois da fundação de Roma, ainda Jesus estava longe de ter surgido. Personagem «Virgílio» que, no dizer de Theodore Ziolkowski, «se encontra quase no limiar de um sistema de valores cristãos no qual o interesse pelo indivíduo pesará mais do que o conceito totalitário da Roma imperial».

Mais do que em todas estas considerações, importará, contudo que o leitor – pois que de literatura se trata e da mais merecedora de reflexão que a Europa, desde sempre, deu a conhecer a todo o nosso planeta – mergulhe no texto de Hermann Broch, por vezes dificilmente superável em beleza e profundidade. Importa que se deixe envolver, antes de tudo, por esse soberbo diálogo entre o poema e o poder imperial que, embora digno de Platão, prima pela «escandalosa» ausência de um Sócrates. «Escandalosa», decerto, mas inevitável, porque, para o autor, a sageza era uma miragem: o resultado do choque entre dois comboios, sabe-se, nunca foi uma síntese…

A personagem «Virgílio» assumia-se como um perjuro – a «Eneida», ele e todos os romanos cultos não o desconheciam, estava longe de constituir um relato fidedigno de factos históricos e, com esse objectivo, Salústio ou Tito Lívio já tinham feito bem melhor. Se queria queimar a sua obra-prima, tão ao gosto do imperador por todas as razões que possam ser imaginadas, mas em primeiro lugar por razões de Estado – era porque, nas horas da agonia, talvez julgasse a verdade o supremo valor. Julgava, não julgava? Afinal, não – e põe a amizade em primeiro lugar. Uma amizade desinteressada por Octávio Augusto, imperador romano. Fica-nos essa amável mensagem.

«Nada que seja irreal deve permanecer» (…) «Adornei Roma e o que eu fiz não vale mais do que as estátuas do jardim do Mecenas.» (….) «A beleza não pode viver sem aprovação. A verdade recusa-se à aprovação.» Tudo isto tinha murmurado o poeta, na agonia. Mas acrescentou: «A realidade é o amor.» De facto, ao contrário de alguns dos seus pares, como Catulo, Tibulo e Propércio, jamais saíra dos seus lábios um canto dedicado à mulher amada, embora tivesse «eternizado» o amor entre Dido e Eneias. Talvez também por isso, confessaria aos amigos: «A Eneida é indigna.»

«Sem verdade era o poema, afastado da realidade o seu herói Eneias, um poema sem profundidade de conhecimento, que nada tinha fixado de verdade, porque só no conhecimento a luz e a sombra se distinguem: o poema havia ficado pálido, sem sombras.» Quem o diz? «Virgílio», criatura de Broch. Quem o garante? Broch, um poeta que, no acto de criar, rejeita tudo o que ele próprio cria. Em nome de quê? Em nome da verdade.

A fama? «É uma dádiva dos deuses – mas não é o objectivo da poesia; só os maus poetas a consideram como objectivo.» E os «bons»? Pouco importariam, no caso: «O novo conhecimento está fora da arte, fora dos domínios das suas alegorias; é esse mesmo o seu carácter essencial.» (…) «O [verdadeiro] conhecimento é emergir do abismo, emergir humildemente da mais humilde contrição, para reencontrar uma nova humildade.»

É neste contexto que Hermann Broch de alguma forma transfigura o Virgílio histórico num poeta pré-cristão, utilizando uma linguagem inequivocamente anacrónica, que seria impensável na época: «Por amor dos homens, por amor da humanidade, o salvador oferecer-se-á em sacrifício: pela sua morte fará da sua pessoa um acto de conhecimento, um acto que lança ao universo para que a sua criação se desenvolva de novo a partir dessa suprema realidade simbólica da caridosa ajuda.»

À beira do fim, a personagem «Virgílio» vive uma mí(s)tica simbiose com Plotia Hieria, a mulher amada: «Sentia a persistência indestrutível da fusão e a absorção de Plotia no seu eu, devido a uma reflexão mútua em todos os elementos que formavam esse eu, a absorção do seu ser sensível e insensível, a totalidade de Plotia desfazendo-se na totalidade da sua vida, nos ósseos rochedos do seu esqueleto, nas raízes presas à terra, no vegetal, no âmago, na vida animal da sua carne e da sua pele; sentia Plotia tornando-se parte do seu eu, da mais íntima visão da sua alma, e sentia-se repousar no seu olhar, vendo-a a ela como ele a via, de dentro.» (…) «Plotia tinha-se tornado parte de si próprio, permanecendo sem ter ficado.»

As derradeiras páginas da obra-prima de Broch podem ter sido inspiradas por Espinosa, ou deverão ainda mais ao Evangelho de João; que sejam lidas com intensa e prolongada atenção: falam de Paz e Amor, do Verbo. Poucos místicos terão ousado rumar com tanto denodo contra «tempos sombrios».

Hermann Broch, «A Morte de Virgílio», Segundo Volume, Relógio d’Água, 1988, 279 páginas