Miguel de Unamuno («Mi Confesión»)

Reencontrar Unamuno

António Rego Chaves

Ler este livro é, de alguma forma, reencontrar «Do Sentimento Trágico da Vida», a obra filosófica mais importante de Unamuno (1864-1936). Trata-se de um texto incompleto que o seu autor nunca fez publicar e que só no ano passado foi dado à estampa pela Universidade Pontifícia Comillas.

Escrita numa data muito próxima de Setembro de 1904, quando o pensador se encontrava prestes a completar quarenta anos, «A Minha Confissão» desenvolve o conceito de «herostratismo», evocando a figura de Heróstrato, o homem que incendiou o templo de Éfeso para que o seu nome, a qualquer preço, se tornasse célebre e nunca pudesse ser esquecido. Unamuno considerava o herostratismo um mal do então jovem século XX – não se enganou, mas haveria que ampliar a asserção até aos dias de hoje – e atribuía a «epidemia» ao facto de a crença na imortalidade da alma se encontrar em vias de desaparecimento um pouco por todo o Ocidente. Da «sua» Espanha dizia que era preciso cristianizá-la – «descatolizando-a»…

Escreve o grande «desassossegador»: «Chamo herostratismo à doença que a todos os escritores e artistas e homens públicos nos aflige, de perpetuar o nosso nome, já que duvidamos de perpetuar a nossa alma. Proponho-me, pois, estudar aqui um mal de que adoecemos (sic) com maior ou menor força a maioria dos modernos intelectuais, ainda que muitos deles queiram ocultar-no-lo. Aspiro a despertar nos que isto leiam aquele desassossego íntimo que sacode continuamente as entranhas do meu ânimo e que é o único caminho para o verdadeiro sossego, para a quietude conquistada, para que se consiga atingi-la – a quem tenha a dita de a conseguir atingir – não afastando os olhos do mistério, mas cravando-os nele.»

Recorda Alicia Villar, catedrática da Universidade acima referida, no «Estudo» qua acompanha a obra: «A preocupação de dom Miguel com os temas religiosos era bem conhecida desde a sua crise de 1897. No seu discurso pronunciado no Ateneo de Madrid ‘Nicodemos o fariseu’, uma das suas ‘Meditações evangélicas’, já havia desvelado perante um público desconcertado o seu desejo de regressar à fé da infância, experimentando então na própria carne as dificuldades de voltar a nascer espiritualmente. A partir daí propôs-se cultivar ‘a acção do pensamento ou o pensamento activo’, e os seus discursos pareciam sermões laicos com matizes protestantes. Também vai tomando consciência de que não é visto com bons olhos, segundo escreve ao seu amigo [Pedro] Múgica [filólogo, compositor e crítico musical]: «Como aqui não se compreende senão o racionalismo (ou o que isso se diz) ou a ortodoxia [católica], quando detectam em alguém um sentido religioso fazem-no passar por clerical.»

A tolerância não era de facto uma das virtudes da época. Unamuno descrevia-a nos seguintes termos: «Vivemos numa tolerância aparente, mas em plena inquisição oculta. Eu sei que não se queima nada, já não se fazem autos-de- fé, mas faz-se algo pior: combater as ideias com a burla.» Para quem publicamente dizia procurar «a fé cristã pura e livre, sem dogmas eclesiásticos», o confronto tornava-se, pois, quase inevitável com uma Igreja Católica que não abdicava de exercer poderes que estavam longe de ser apenas espirituais. O «herege», na época reitor da Universidade de Salamanca, seria incomodado, nomeadamente pelo bispo da cidade, Tomás Cámara, mas não cederia às investidas da hierarquia, nem às da imprensa conservadora mais «militante», nem às de oficiais do mesmo ofício, professores universitários seus adversários. Foi forçado a ouvir, porém, acusações de «corromper a juventude», desviando-a do «bom caminho».

Reivindicando «a santa liberdade de consciência», escrevia Don Miguel ao seu já mencionado amigo Pedro Múgica, em 2 de Dezembro de 1903: «Necessito de desafogo. Acabo de entrar, com o Inverno, num período de actividade e agitação interior, que coincide com ter chegado ao seu cúmulo a campanha que contra mim fazem nesta cidade [de Salamanca] os elementos católicos (as coisas pelo seu nome) e a velada ameaça do bispo de iniciar hostilidades. Prevejo o dia em que tenha de desnudar todo o meu pensamento e dizer alto e bom som que o catolicismo – sobretudo tal como aqui se entende – nos está descristianizando. Em vez de dar ao povo uma luz para que veja o seu caminho e o siga por si, mete-o num carro e leva-o às escuras. E o pior é a mentira, a enorme mentira em que vivemos muitos dos espanhóis. Vive-se em mentira e morre-se em mentira. E o que mata é a mentira, não o erro. O que prega a verdade sem acreditar nela, e até desprezando-a, poderá ilustrar as mentes, mas envenena os corações; ao passo que quem prega erros acreditando que são verdades e está cheio de fé nelas, ainda que por momentos desvie as inteligências do seu caminho, orienta e fortifica os corações e estes por fim corrigem aquelas.»

A dialéctica entre inteligência e coração é uma constante na obra de Unamuno: «Deus não é racional, mas cordial; não se demonstra com argumentos lógicos a sua existência, tal como não se demonstra a sua não existência. Ou se sente ou não se sente; ou se tem experiência pessoal d’Ele – e para nós os cristãos por meio do Evangelho, v. João – ou não se tem. Para o que o sente as razões são de mais; para o que o não sente, também.»

Este texto inacabado poderá ser lido como um trabalho preparatório do ensaio «Vida de Dom Quixote e Sancho» (1905), mas em primeiro lugar como esboço da obra-prima de Unamuno, «Do Sentimento Trágico da Vida» (1913). E, tal como esta, talvez seja apenas uma dolorida paráfrase de um aterrador versículo da Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios, aliás evocado pelo filósofo: «E se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens.»

Miguel de Unamuno, «Mi Confesión», Ediciones Sígueme, 2011, 142 páginas