Na Vida, rigorosamente... (Henry Miller)

António Rego Chaves

«Os Livros da Minha Vida» traduzirá correctamente o título «The Books in My Life»? Não seria preferível ter adoptado na edição portuguesa (como, aliás, na castelhana, ao contrário do que sucedeu na versão francesa), a tradução literal «Os Livros na Minha Vida»? A questão não é formal: ao escolhermos o vocábulo «DA» induzimos o leitor a concentrar a sua atenção nos livros lidos por Henry Miller; se optamos por um quem sabe se menos apelativo «NA», é a sua própria vida – além do papel nela desempenhado pelos textos que «devorou» – que se transforma no nó do problema. Para alguém que raramente renunciou a cultivar uma acentuada vertente autobiográfica em tudo o que publicou, o problema pode e deve ser posto sem rodeios: na verdade, mesmo quando abordou outros temas de forma explícita, tudo veio a desaguar sempre no «Ego» do nosso autor. Não é esta uma forma oblíqua de o censurar, apenas um alerta para que se tome boa nota de observação incontroversa.

É bem certo que o leitor encontrará referidas nesta obra – editada quando o «velho» Henry Miller contava cerca de sessenta anos –, dezenas e dezenas de livros que ele fora lendo ao longo da vida, bem como uma lista do que, em 1952, ainda tencionava ter ocasião de ler. Esta inclui autores tão diversos como Casanova e Chestov, Huizinga e Henry James, Tomás de Aquino e Jacques Vaché. Quanto aos que mais o teriam influenciado, cita uma centena de nomes. Eis alguns deles: Abelardo e Hans Christian Andersen, Balzac e Bocaccio, Breton e Emily Brontë, Lewis Carroll e Céline, Cendrars e Chesterton, Dostoievski e Defoe, Alexandre Dumas e Eckermann, Ralph Emerson e Elie Faure, Gide e Giono, Van Gogh e Grimm, Knut Hamsun e Hermann Hesse, Hugo e Huysmans, Kropotkin e Lao-tse, Ramakhrisna e Thomas Mann, Nerval e Nietzsche, Nijinski e Nostradamus, Petrónio e Plutarco, John Cowper Powys e Proust, Rabelais e Rimbaud, Romain Rolland e Walter Scott, Spengler e Strindberg, Swift e Tennyson, Thoreau e Mark Twain, Walt Whitman – último na ordem alfabética, mas talvez o preferido pelo «garoto de Brooklyn».

Far-nos-á o livro a apologia dos diligentes e incansáveis «ratos de biblioteca»? Também a resposta a esta pergunta nos conduz à justificação da escolha pelo autor do título «The Books in My Life» – e não «The Books of My Life». Ele explica: «Estou agora consciente de que não precisava de ter lido nem um décimo do que li. A coisa mais difícil na vida é aprendermos a fazer apenas aquilo que é estritamente vantajoso e vital para o nosso bem-estar.» E acrescenta: «Creio que numa determinada idade se torna imperativo reler os livros da infância e da juventude, pois, de outro modo, podemos acordar num túmulo sem saber quem somos ou por que vivemos.» (…) «A luta do ser humano para se emancipar, isto é, para se libertar da prisão que ele próprio construiu, constitui, para mim, o tema supremo. Talvez seja por isso que não consigo ser plenamente “escritor”. Talvez seja essa a razão de, nos meus livros, dar tanto espaço à pura experiência de vida.» (…) «Para mim, os únicos revolucionários verdadeiros são os inspiradores e os activadores, figuras como Jesus, Lao-tse, Gautama – o Buda, Akhnaton, Ramakrishna, Krishnamurti, A bitola que emprego é a vida, ou melhor, a maneira como os homens se posicionam perante ela.» (…) «Os homens afastam-se dos livros, o que quer dizer, dos escritores, dos “intelectuais”. É bom sinal – desde que substituam os livros pela vida!»

Neste contexto, é fácil compreender por que motivo(s) o criador de «Trópico de Câncer» atribuiu uma especial importância ao romance autobiográfico, que com o correr do tempo substituiu as grandes confissões. «Este género de literatura não é um misto de verdade e de ficção, mas uma expansão e aprofundamento da verdade. É mais autêntico, mais verídico do que o diário. O que os autores destes romances autobiográficos oferecem não é a frágil verdade dos factos, mas a verdade da emoção, da reflexão e da compreensão, a verdade digerida e assimilada.» Basta recordarmos «Morte a Crédito» (Céline), ou «Retrato do Artista Quando Jovem» (Joyce), ou, vamos lá, e sem qualquer favor, «Primavera Negra» (Henry Miller), para não ter dúvidas acerca do que aqui ficou em jogo a partir do início da segunda metade do século XX, além do talento ou do génio dos escritores do futuro: a verdade, a autenticidade e a honestidade, toda a verdade, toda a autenticidade e toda a honestidade, nada mais do que a verdade, a autenticidade e a honestidade em Literatura. E, acima de tudo, rigorosamente, na Vida.

Henry Miller, «Os Livros da Minha Vida», Antígona, 2004, 397 pag., 23 €