Paul Ricoeur: um auto-retrato

António Rego Chaves

Cada um de nós lê muitas vezes com maior ou menor interesse um filósofo em grande parte determinado pelo primeiro texto da sua autoria que lhe chegou às mãos. Assim, muitos terão desistido de conhecer com alguma profundidade Platão, Descartes ou Kant porque não começaram por onde deveriam ter começado. Paul Ricoeur, falecido precisamente há uma semana com 92 anos, não será excepção a esta regra, e por isso se alerta desde já o leitor para não iniciar este livro pelo primeiro dos dois ensaios que o integram, mas pelo último – que aliás, pode ser assumido como uma excelente introdução a toda a obra do pensador e tem por título «Autobiografia Intelectual».

Deixemos, pois, «Da Metafísica à Moral» – texto um tanto desencorajante, porque muito árido e dirigido ao público especializado da «Revue de métaphysique et de morale» – e fixemo-nos na «Autobiografia Intelectual» deste filósofo francês, cuja obra mergulha as suas raízes mais profundas em Edmund Husserl, Max Scheler e Alexander Pfänder. Grande admirador de Santo Agostinho e Kant, manteve um diálogo sempre crítico e criativo com pensamentos tão diversos como os de Henri Bergson, Karl Barth, Jean Nabert, Freud, Lacan, Heidegger, Saussure, Barthes, A. J. Greimas, Marx, Althusser, Gadamer, Habermas, Jaspers, Sartre, Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, Foucault, Derrida, Levinas, Mounier, Hannah Arendt, Eric Weil, John Rawls, Mircea Eliade e, sobretudo, Gabriel Marcel.

Filosofia reflexiva francesa, fenomenologia e hermenêutica foram, segundo escreveu num texto publicado em 1986, as grandes etapas da sua evolução intelectual. Não sigamos, porém, à letra, este esquema redutor da inquietação espiritual de um cristão que, concentrado nas relações entre filosofia e teologia e na problemática do mal, ousou proclamar, em «O Conflito das Interpretações»: «É preciso compreender para crer, mas é preciso crer para compreender». Sabia do que falava. Perdidos mãe e pai desde os dois anos, este último durante a Grande Guerra, muito cedo terá cimentado em si a experiência do luto pelos progenitores que mal chegara a conhecer. Recolhido pelos avós paternos, separado de grande parte da família, jamais pronunciou, segundo revela em «A Crítica e a Convicção», a palavra «mamã». Mais tarde assistirá à morte da irmã, de 21 anos, levada pela tuberculose. O seu pensamento já então circula «entre dois pólos: um pólo bíblico e um pólo racional e crítico». Essa dualidade, segundo confessou sem a menor ambiguidade, manteve-se durante toda a sua (longa) vida.

Explica Paul Ricoeur na «Autobiografia: «Foi somente sob a pressão da minha dupla formação cultural, bíblica e grega, que me senti obrigado a incorporar na filosofia reflexiva, proveniente de Descartes e Kant, (…) a interpretação dos símbolos da mácula, do pecado e da culpa, nos quais vi o primeiro estrato das expressões indirectas da consciência do mal.» (…) «Mantendo-me fiel à minha norma de uma rigorosa separação, dirigi toda a minha atenção para a compreensão respeitante à fé, num estreito diálogo entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica bíblica.» E releva «a questão da relação conflitual-consensual entre a minha filosofia que recusa o absoluto e a minha fé bíblica que é alimentada mais pela teologia», esclarecendo que em «Amor e Justiça» (1990) «aponta a direcção a seguir ao aceitar este caminho.»

Ouçamos ainda uma vez Paul Ricoeur, na mais pungente página da «Autobiografia»: Em 1986, «atingiu-nos o raio que despedaçou toda a nossa vida: o suicídio do nosso quarto filho. Começou um período interminável de luto, sob o signo de duas afirmações persistentes: a sua intenção não era magoar-nos, a sua consciência, reduzida à sua solidão, tinha estado tão intimamente ligada à única coisa a fazer. O seu acto merecia ser honrado como uma acção voluntária, sem o envolver em desculpas mórbidas. Como poderia eu não falar deste acontecimento dramático, mesmo numa autobiografia intelectual?» (…) «Após esta Sexta-feira Santa da vida e do pensamento partimos para Chicago onde uma outra morte nos aguardava, a do nosso amigo Mircea Eliade. (…) Esta morte, que deixou atrás de si uma obra, tornou ainda mais cruel aquela outra que parecia não ter deixado nada. Tinha ainda de aprender que, ao igualar todos os destinos, a morte convida-nos a transcender a aparente diferença entre obra e não obra. Trouxe-me alguma consolação um ensaio que tinha escrito no Outono precedente e que tinha sido publicado pouco tempo depois da catástrofe. Neste texto intitulado “O mal. Um desafio à filosofia e à teologia” (1986), procurei formular as aporias geradas pelo mal – o sofrimento – e escondidas pelas teodiceias. Mas também esbocei, em conclusão, as etapas do caminho do consentimento e da sabedoria. Subitamente descobri ser eu próprio o destinatário inesperado desta amarga reflexão.»

No referido ensaio sobre o mal, salienta Paul Ricoeur que o Livro de Job – onde a lamentação se transforma em queixa e a queixa adquire o estatuto de contestação – não fornece qualquer resposta directa ao sofrimento pessoal da personagem bíblica. No entanto, o filósofo protestante acentua que Job conseguiu amar Deus «por nada», isto é, «saiu completamente do ciclo da retribuição, de que a lamentação ainda continua cativa enquanto a vítima se queixa da injustiça da sua sorte». E conclui: «Talvez este horizonte da sageza, no Ocidente judeo-cristão, confirme o da sageza búdica nalgum ponto que só um diálogo prolongado entre judeo-cristianismo e budismo poderia identificar.» Como estamos infinitamente longe, neste mundo de um exigente pensamento crítico que, porque sabe não ser dono da verdade absoluta, assume com humildade o seu relativismo, do arrogante dogmatismo da declaração «Dominus Jesus», assinada em 6 de Agosto de 2000 pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger, o actual Papa Bento XVI…

Paul Ricoeur, «Da Metafísica à Moral», Instituto Piaget, 1997, 137 páginas