O segundo Alcácer Quibir (Sidónio Pais)

António Rego Chaves

Escreve Oliveira Marques que «o regime sidonista se caracterizou «pelo terror imposto aos adversários», salientando que «o seu único cimento era a figura de Sidónio Pais, galante e bravo, elegante no seu uniforme militar, atraindo como poucos as massas em seu redor, suscitando devoções pessoais fervorosas e adesões de todas as fileiras.» Acrescenta: «Verdadeiro herói popular, para muitos um novo D. Sebastião, sobrepondo à legalidade constitucional o arbítrio da sua vontade, corrigindo os desmandos dos seus partidários com gestos românticos de perdão e de liberdade, Sidónio e o seu regime, fértil em desfiles militares, em cavalgadas pelas ruas e em recepções brilhantes, era bem o oposto da República burguesa e puritana, dominada pelo racionalismo maçónico e simbolizada por um Teófilo Braga modestamente vestido, de guarda-chuva no braço e deslocando-se de eléctrico.» Acentua também o historiador que a «mística do chefe», inexistente em Portugal pelo menos desde D. Miguel, encontrou no «Presidente-Rei» o seu primeiro representante no século XX. Abandonado pelos republicanos, lembra, o ditador teve de se apoiar mais e mais na extrema-direita (monárquicos, clericais, alta burguesia). E a «República Nova» alargou a repressão a todo o País, com milhares de prisões – incluindo as de Afonso Costa e Magalhães Lima, o Grão-Mestre da Maçonaria –, torturas e espancamentos. Veríssimo Serrão releva o populismo do demagogo que declarava ser «o mandatário da Nação», «o chefe de todos os portugueses» e «o guardião da ordem pública», a fim de protagonizar «uma grande Cruzada de regeneração». E, depois de se referir à ida de Sidónio aos hospitais do Porto, «para minorar a sorte dos enfermos, como fizera o rei D. Pedro V», o historiador cita esta tirada de antologia, debitada pelo «chefe» numa visita à Sopa dos Pobres: «A sopa aqui distribuída não é uma esmola, porque o Estado tem a obrigação de conservar a vida de todos, não sustentando ociosos, mas velando por aqueles que devido à sua má sorte não têm bens para conservar a vida.» Será que o garboso militar não se apercebia de que nem só de sopas podiam viver os portugueses?

Nada disto ignora João Medina, responsável por uma «História de Portugal», por uma «História Contemporânea de Portugal» e autor de cerca de uma dezena de textos consagrados a Sidónio e ao sidonismo. Ao editar, agora, sob o título «O ‘Presidente-Rei’ Sidónio Pais», três dos estudos que elaborou em diferentes épocas dedicados a estes dois temas, decerto teve presente que o leitor atento iria detectar numerosas e fatigantes repetições de ideias e frases, uma injustificável descoordenação entre os textos, mesmo um ou outro polémico gato muito subjectivo servido como se fosse uma apetitosa lebre recheada de indiscutíveis verdades históricas. Enfim, são opções…

«Fanático» da iconografia na apresentação dos seus ensaios, decerto que João Medina já se tornou incapaz de apreciar os laboriosos «mangas-de-alpaca» estranhos à «tabloidização» da História, como um Alexandre Herculano ou um Oliveira Martins. As palavras que fez imprimir na última página deste livro são, aliás, bem elucidativas desta sua obsessão, ao referir-se a «Sidónio e o Sidonismo», de Armando Malheiro da Silva, que saúda como «obra sólida pela sua seriedade, afã documental e densidade factual criteriosamente seleccionada», mas… manchada por «insensibilidade icónica», «iconofobia de raiz» ou «daltonismo sensorial». Ficaríamos por aqui, se o autor não tivesse ousado repetir-nos, do alto da cátedra, esta insólita «verdade», integralmente copiada de um seu texto inserido na «História de Portugal» sobre José Júlio da Costa, o homem que matou Sidónio na estação do Rossio: «O verdadeiro assassino, esse ficou incólume, embora tivesse sido barbaramente agredido no próprio local do acto e, depois, na Escola de Guerra.» Quê, «barbaramente agredido» e «incólume»? O parágrafo seguinte «tranquiliza-nos»: afinal o assassino ficou com a cabeça partida, os aspirantes da Escola de Guerra atingiram-no com pontapés, o sangue corria-lhe sobre o fato roto. Teria ficado de facto «incólume», com ou sem «daltonismo sensorial»?!

Nem «apressado jornalista», nem «pseudo-historiador estabanado» (expressões de João Medina), o leitor desta obra ficará reconhecido ao autor por este insistir, embora sem a profundidade exigível a qualquer escrupuloso investigador, nas semelhanças e diferenças entre a «República Nova» de Sidónio e o «Estado Novo» de Salazar, ou na ruptura de ambos com a política de Afonso Costa em relação ao Vaticano, ou, ainda, quando lhe garante que Sidónio foi o «único grande homem ou homem superior que habitou Belém durante todo o século XX». Estaria assim quase tudo definido, mas faltou esclarecer se, na opinião do autor, Salazar, que tratava os seus fidelíssimos «Presidentes» como servos, também era um «grande homem ou homem superior»…

Sidónio só dominou o País durante cerca de um ano (entre 5 de Dezembro de 1917 e 14 de Dezembro de 1918), praticamente sempre na Grande Guerra. Não teve tempo para ser Primo de Rivera nem Mussolini; nem para formar um partido único; nem para impor uma Constituição. Mas, na linha de João Franco e Pimenta de Castro, lá foi chocando os ovos donde emergiria o tirano de Santa Comba. Entre republicanos e monárquicos, talvez apenas tenha sido (palavras do deputado seu coetâneo Celorico Gil) «uma espécie de D. Quixote, com certos ares napoleónicos, tendo atrás de si, como estandarte, uma caveira espetada no dorso dum cavalo, cercado de uma dúzia de oficiais imberbes, e a alguma distância, a servirem de banda regimental, pobres famintos empunhando as latas da sopa económica». É certo que tal «Presidente-Rei» de opereta fascinou um Fernando Pessoa. Mas pereceu o demagogo «num novo Alcacer-Kibir na noite»? «Nele uma hora incarnou el-rei Dom Sebastião»? Não teria já bastado aos pobres dos portugueses a desdita de suportar o indesejável «Desejado», sabe-se lá se também ele, como Sidónio na debilmente fundamentada versão de João Medina, «grande homem ou homem superior»?

João Medina, «O ‘Presidente-Rei’ Sidónio Pais», Livros Horizonte, 2007, 110 páginas