História e sensacionalismo (Inês de Castro)

António Rego Chaves

História de Portugal «vende». Os romances históricos «vendem» mais ainda. Autores e editores, atentos, exploram com pertinácia os filões. Perante «O Julgamento de Inês de Castro – Toda a verdade sobre o fim trágico da mais fascinante história de amor: a de Pedro e Inês» – seria lícito pensarmos que iríamos aprender algo de novo sobre o «caso» em apreço. Nada disso: falecido em 1974, o autor desta compilação de antigos textos alheios – pois de mera compilação de antigos textos alheios se trata – limita-se a oferecer-nos alguns bem conhecidos elementos de consulta. Ele próprio nos adverte: «Nas páginas que vão ler-se não está feito qualquer trabalho novo de investigação. Reúne-se, sim, numa tentativa de síntese geral, o que de mais interessante sobre o assunto foi apurado.» Só que Artur Pedro Gil não poderia prever que, mais de 30 anos depois da sua morte, o seu livro seria publicado tendo impressos na capa os dizeres sensacionalistas acima transcritos. Cremos que não permitiria tal atropelo, como se nada tivesse sido descoberto e escrito sobre Pedro e Inês desde 1974.

Embora o título seja inaceitável, aconselhamos a leitura desta obra aos menos informados acerca do drama de D. Pedro e Inês de Castro. E porquê? Porque é difícil o acesso a algumas das fontes transcritas pelo autor. Cito pela ordem apresentada no livro: Damião Peres, J. T. Montalvão Machado, Mário Domingues, Ângelo Ribeiro, António de Vasconcelos, Oliveira Martins, Júlio Cantas (sic, mas aliás Júlio Dantas, o injustiçado alvo do azedume de Almada Negreiros), Fernão Lopes, Rodrigues Acenheiro, Marcello Caetano, A. Vieira Natividade, Rui de Pina. Será bom ler todos. Talvez melhor que ninguém, os investigadores e os estudiosos sabem que a verdade absoluta só existe para alguns autistas iluminados, sabe-se lá por que Espírito Santo…

Ouçamos Oliveira Martins, citando Alexandre Herculano: «D. Dinis foi um avaro, Afonso IV um homem de juízo, Pedro I um doido com intervalos lúcidos de justiça e economia.» E agora algo de sua lavra: «A loucura de D. Pedro I vale, a nosso ver, tanto como o banditismo de Afonso Henriques. Os dois reis são os dois tipos – da guerra e da justiça. Assim como a primeira era selvagem e feroz, assim a segunda é irregular, cheia de caprichos e arbitrária. Mas se Afonso Henriques foi o chefe do bando, D. Pedro I é decerto o pai da família portuguesa.» Depois: «Dir-se-ia um rústico feito rei, e acaso por isso o povo o amava tanto. Não tinha distinções, nem delicadeza no sentimento, nem no trato. Em tudo era brutal. Se confundia em si o juiz e o algoz, as suas festas eram quermesses extravagantes e plebeias.» Concluindo: «Era um democrata, um tirano à moda antiga, em cujo espírito encarnara toda a brutalidade popular: por isso mesmo era adorado! Os seus castigos terríveis, passando de boca em boca, faziam-lhe um pedestal de força, e nas suas contínuas folganças populares comentavam essa força com o amor íntimo que nos merece quem tem connosco a irmandade de gostos. O povo via-se rei na pessoa de D. Pedro.»

Mas será que o povo, o «país real» existente em meados do XIV, era mesmo assim? Deixemos António de Vasconcelos responder: «É certo que o povo português não acolheu com simpatia, nem desculpou com tolerância, as ligações adulterinas, incestuosas e desvairadas de Pedro e Inês. A plebe sentia-se inclinada para D. Pedro, apesar dos seus defeitos, e em parte até estimulada por alguns desses mesmos defeitos. Mas detestava a amante, a quem reputava, talvez injustamente, mulher intriguista e aventureira, que, sendo instrumento (pelo menos assim o supunha) das ambições megalómanas, e das audácias ambiciosas dos dois irmãos, D. Fernando de Castro e D. Álvaro Pires de Castro, abusava do ascendente que tinha no ânimo do príncipe, a quem enfeitiçara, arrastando-o a praticar erros, a fazer grandes disparates, para servir as ambições daqueles. Já sucedera a mesma coisa por ocasião dos amores de Sancho II e Mécia Lopes de Haro, viria a repetir-se idêntico fenómeno da psicologia popular em face dos amores, não menos desvairados, de Fernando e Leonor Teles.» António Ferreira, Camões e Reis Quita confirmarão a antipatia do povo pela Castro. Quanto à sexualidade de D. Pedro, Júlio Dantas, além de escritor, licenciado em Medicina, sublinhará e ampliará em 1927 uma clara insinuação que já vinha do cronista Fernão Lopes: D. Pedro era não só heterossexual como «um homossexual acidental e activo, por hipersexualidade, por ultravirilidade» […] «mas, em todo o caso, um tarado, apresentando anomalias graves sob o ponto de vista psico-sexual».

Em termos de política peninsular, o que menos importava a D. Afonso IV, pai do então infante, era o «colo de garça» de Inês de Castro. A independência de Portugal estava ameaçada, dada a possibilidade de um dos bastardos da amante de D. Pedro subir ao trono, em detrimento de D. Fernando, filho legítimo da falecida rainha D. Constança. Daí a decisão de condenar à morte e executar Inês de Castro, por «razão de Estado». A verdade é que D. Pedro reinaria de 1357 a 1367 e, durante todo esse período, quebrando a tradição, Portugal não se envolveu em guerras com Castela.

O resto é bem conhecido: a extradição de Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves, o bárbaro assassínio de ambos em Santarém, o sepultamento dos restos da «rainha» Inês de Castro no Mosteiro de Alcobaça, ao lado do que viria a ser o túmulo de D. Pedro I.

Sintetizou Oliveira Marques: «Um paixão amorosa altamente romanceada tornou-se pretexto para a influência castelhana em Portugal. D. Pedro, herdeiro da Coroa Portuguesa, apaixonou-se por uma dama da casa de sua mulher, D. Constança, que pertencia a uma poderosa família de terratenentes em Castela. Ao que parece, D. Pedro converteu-se em joguete nas suas mãos e nas dos seus parentes castelhanos também. O idoso e orgulhoso Afonso IV não podia tolerar tal facto, acabando por ordenar a morte de Inês. As consequências deste crime foram uma curta guerra civil e o surto de um drama histórico que se aguentaria no cartaz durante mais de cinco séculos.» Só cinco?

Artur Pedro Gil, «O Julgamento de Inês de Castro», Ministério dos Livros, 2008, 287 páginas