Desrazões de uma canonização (Nun'Álvares Pereira)

António Rego Chaves

Se outros méritos não tivesse este livro – e seguramente que os tem – um o recomenda sem lugar para controvérsias: a ironia. Invulgar ironia da casa editora, invulgar ironia do prefaciador, invulgar ironia do autor. Num país pouco dado a tais devaneios do pensamento e da escrita, que desde sempre parece preferir o peso do drama de faca e alguidar à vivacidade da cantiga de escárnio e maldizer, a opção fala por si. Chega-nos assim uma onda de ar despoluído, vinda de 1932, decerto bem mais estimável e tonificante do que a dos recentes, reverentes e sorumbáticos discursos sobre o «Santo Condestável» da autoria de Jaime Nogueira Pinto ou Pinharanda Gomes.

Invulgar ironia dos «editores refractários» Antígona, e do prefaciador, João Macdonald, bem patente no seguinte texto inserto nas badanas: «O estímulo espiritual e patriótico proporcionado aos cidadãos da República Portuguesa no dia 26 de Abril de 2009 pela transformação do general supremo das tropas de D. João I em santo é algo que deve ser, acima de tudo, agradecido aos ‘media’ nacionais, bem como aos diligentes membros – e não foram poucos – da indústria livreira, que cedo forneceram ao mercado volumes laudatórios do ex-beato Nuno de Santa Maria Álvares Pereira (1360-1431), fundador da Casa de Bragança. Seria, portanto, indelicadeza da Antígona não se associar aos festejos desta nova forma de consubstanciação. Por isso considerou a casa editorial ser oportuna a reedição de ‘O Santo Condestável: Alegações do Cardeal Diabo’, obra de 1932, saída da pena de José Tomás da Fonseca. Neste texto, o autor, citando o iluminista Jean Le Rond d’Alembert sobre outro santificado, recorda: ‘Prejudicaram a reputação deste excelente homem, canonizando-o.’ Ora, para a Antígona, a reputação dos homens é um assunto seriíssimo.»

Invulgar ironia do autor: Tomás da Fonseca (1877-1968) dedica o texto – proveniente de uma conferência que proferira no Ateneu de Coimbra em 1932 mas que fora interrompida por um grupelho de díscolos do Centro Académico da Democracia Cristã, agremiação de que Salazar fez parte – «à memória dos mártires que a Inquisição queimou nas fogueiras acesas pela Igreja e alimentadas, quase sempre, pela riqueza e descendentes de Nun’Álvares». Recordando o Evangelho de São Lucas («como é difícil os que têm riquezas entrar no reino de Deus», «é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus») e acentuando que, como sublinhou Oliveira Martins na sua biografia do Condestável, «o Alto Minho, Trás-os-Montes e o Alentejo eram dele», afirma: «Como é sabido, o santo casou por ambição. D. Leonor Alvim era uma viúva riquíssima. Com os bens que arrancou ao Mestre de Avis, pelos serviços militares que lhe prestara, a casa de Nun’Álvares ficou logo a mais firme e opulenta do reino. Depois, não quis mais que uma filha [Beatriz], para também a casar alto, e tão alto que o noivo foi um filho do próprio rei glorioso [D. Afonso, um bastardo de D. João I].»

Já Júlio Dantas tornara claro que o Condestável seria «tão ilegitimamente canonizável como qualquer outro mestre na arte suprema de matar e de triunfar.» Mas, pergunta o autor: «Porque o beatificaram?» E responde: «Se a Igreja o fez para ser agradável ao exército, de que ele foi lustre e glória, perdeu o seu tempo, visto que nos regimentos não se acredita muito que possa haver oficiais no céu! Se foi para lisonjear os novos-ricos, de que ele era o maior, no tempo em que viveu, também nada ganhou a Igreja, porque os nossos terratenentes e argentários são os primeiros a não acreditar que Deus os queira lá, seja para o que for. Se eles sabem, tão bem ou melhor que o próprio Altíssimo, o que fizeram para chegar a ricos! Além de que, no Evangelho há, como vimos há pouco, uma passagem, ou melhor, um aviso que tira a todos eles a esperança de lá porem os pés!»

Tomás da Fonseca sustenta, depois, referindo-se a Nun’Álvares, que «o seu maior prazer consistia no jogo das armas e no desbaratar de castelhanos» e interroga: «Como poderia ele viver na corte celeste se quase toda ela é constituída por santos e santas espanholas? As reclamações e os protestos seriam tantos e de tal maneira violentos que Deus ver-se-ia obrigado a pô-lo fora.» Aponta o dedo à realeza: «Todos nós compreendemos, embora não justifiquemos, o empenho que a casa de Bragança tem mostrado na glorificação do seu poderoso ascendente e fundador. Após cinco séculos duma vida faustosa e absorvente, em permanente conflito com a moral e a justiça, o que trouxe à nação e à liberdade os maiores danos, é natural, agora, que pretenda reabilitar-se perante a História, que a marcou a fogo.» (…) «[A rainha] Dona Amélia d’Orléans e o bronco [cardeal] D. José Neto prepararam as coisas e eis o processo [enviado] para Roma.»

No prefácio que elaborou para este texto, João Macdonald esboça com mão segura a imprescindível biografia do «cavalheiro anarquista» e livre-pensador Tomás da Fonseca, desde o ingresso no Seminário de Coimbra, a ruptura com a Igreja Católica, a amizade com Guerra Junqueiro, passando pelos anos que precederam imediatamente a implantação da República (ao lado de Francisco Pulido Valente, Câmara Reis ou Lopes de Oliveira), até à eleição como deputado e senador, à oposição ao sidonismo, à fundação da Universidade Livre de Coimbra, aos sucessivos aprisionamentos durante a ditadura. Quase 91 anos de uma vida «cheia», à qual não faltou, além de intensa actividade política e no campo do ensino, uma valiosa obra com cerca de quarenta títulos, como «Evangelho dum Seminarista», «Sermões da Montanha», «Memórias do Cárcere», «No Rescaldo de Lourdes», «A Igreja e o Condestável» e «Na Cova dos Leões» – decerto o seu livro mais polémico e mais conhecido, por ter posto em causa as chamadas «aparições de Fátima» em plena era de Salazar e Cerejeira. Foi um homem indomável.

Tomás de Fonseca, «O Santo Condestável : Alegações do Cardeal Diabo», Antígona, 2009, 109 páginas