Caminhos da liberdade (Simone de Beauvoir)

António Rego Chaves

Era previsível: «Le Magazine Littéraire», por ocasião do centenário do nascimento de Simone de Beauvoir (1908-1986), não poderia deixar de consagrar a maioria dos seus textos à temática daquela que é quase unanimemente considerada a sua principal obra, «O Segundo Sexo». Em tempo oportuno referimo-nos já nestas páginas à antologia de Ingrid Galster «Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir», onde se documenta exaustivamente a histórica recepção negativa que o polémico texto, a partir de 1948, teve em França. Inesquecíveis se tornaram as abjectas reacções do católico François Mauriac, da comunista Jeannette Prenant, do «existencialista cristão» Gabriel Marcel. Que nos seja permitido, agora, atribuir ao feminismo um relevo mitigado, até porque a paixão da liberdade é bem mais abrangente do que a paixão dos direitos da mulher – e ambas foram vividas, com um intenso vigor, pela corajosa e combativa intelectual.

Como salienta Jean-Louis Hue, Simone de Beauvoir soube desenvolver uma filosofia original tanto na abordagem da condição feminina como na da velhice. É evidente que não se pode ignorar a sua longa caminhada lado a lado com Jean-Paul Sartre, a sua evolução da pertinaz prática católica para o ateísmo, da indiferença política para o filocomunismo, do tradicionalismo para a subversão dos costumes sexuais. E talvez nos seja lícito formular uma ou outra pergunta tão incómoda quanto pertinente. Por exemplo, sobre «Une mort très douce» ou acerca «La Cérémonie des adieux», textos consagrados, respectivamente, à agonia e morte de sua mãe e de Sartre: Onde acaba a literatura e começa a impiedade? Onde acaba o voyeurismo e onde começam o masoquismo ou o sadismo? Onde acaba a reportagem e começa o ajuste de contas? E será que os «amores contingentes» de Sartre e Beauvoir – unidos por um mítico pacto vitalício de «amor necessário» – não produziram gravíssimos «danos colaterais» nos seus incautos destinatários? À luz do humanismo por ambos reivindicado, este acordo entre predadores não nos pode deixar indiferentes. Ou aprovaria a moral existencialista tratar o Outro como Objecto, não como Sujeito, como Coisa, não como Pessoa, como simples meio que se utiliza e lança fora, não como um fim em si mesmo?

Aliás, em matéria de existencialismo, faz notar Éric Deschavanne, Beauvoir demarca-se de Sartre num ponto essencial, depois de ter meditado sobre a condição feminina e sobre a sua própria vida: a «doutrina da justificação». Afirmando que «o homem é uma paixão inútil», Sartre deixara bem clara a vanidade de todas as tentativas para justificar a existência – e que nem mesmo a obra que gerou poderia justificar a sua presença no mundo. Numa palavra, não haveria mesmo «salvação» para os humanos. Menos radical, Beauvoir nunca considerou o seu intenso labor como uma forma ilusória de justificação: «a actividade, o progresso contínuo na carreira ou a criação, a possibilidade de inventar a sua vida e de conquistar o seu sentido abrem a seus olhos a via autêntica da salvação» – afirma ainda Éric Deschavanne.

«La Vieillesse» (1970) pode ser encarado como uma consequência lógica das escolhas filosóficas e políticas da ensaísta. A sociedade capitalista é acusada de pôr de lado os velhos, considerados improdutivos, condenando-os à miséria. «A velhice, observa, denuncia o falhanço da nossa civilização. É preciso refazer completamente o homem, é preciso recriar todas as relações entre os homens, se quisermos que a condição de velho seja aceitável.» Como releva Pierre-Henri Tavoillot, «quer se trate da velhice quer se trate da condição feminina, a moral existencialista prescreve que se avaliem as oportunidades do indivíduo, não em termos de felicidade, mas em termos de liberdade.» (…) «O homem velho é o reformado, quer dizer, o homem sem funções, distinto do adulto, definido pelas suas funções sociais.» Mas há uma diferença, segundo Beauvoir, entre a velhice dos homens e a do «segundo sexo»: «Para as mulheres, a última idade representa uma libertação: toda a vida submetidas ao marido, devotadas aos filhos, podem finalmente preocupar-se consigo próprias.» Embora a autora não tivesse tido, nem querido ter, marido e filhos, não falava de cor…

Que fazer da velhice, então? A resposta é simples: imprimir um sentido à vida, ajudar indivíduos ou colectividades, procurar trabalho social ou político, intelectual, criador. Emancipar a mulher é permitir-lhe que ela se torne adulta; emancipar o velho é não deixar morrer o adulto que nele ainda habita, para que a velhice possa ser «silenciada». Mas a solução é complexa, pois seria física, psíquica, cultural, económica, política – e não se encontra à vista em sociedades obcecadas com o aumento da produtividade dos cidadãos e pouco ou nada inclinadas a despender elevadas verbas do orçamento estatal com gente considerada «inútil» pela execrável tecnocracia anti-humanista triunfante.

Benoîte Groult diz sobre a autora de «O Segundo Sexo»: «É certo que a evolução das mentalidades e os progressos da biologia tornaram por vezes caducas muitas das suas análises. O sombrio quadro que Beauvoir traçava da alienação das mulheres, a obsessão das gravidezes não desejadas, os partos na dor, a menopausa ‘que despoja a mulher de toda a sua feminilidade’, são datadas de uma época felizmente desaparecida, em parte graças a ela. Mas ela foi a primeira da recusar a ‘alienação à espécie da fêmea humana’.» Não alimentemos, porém, a tendência para reduzir Simone de Beauvoir ao feminismo. «Mémoires d’une jeune fille rangée», «La Force de l’âge», «La Force des choses» e «Tout compte fait», são, sem dúvida, textos indispensáveis a quem quiser conhecer a vida intelectual e política francesa de grande parte do século XX. Quanto aos seus romances e ensaios, encontramos neles inúmeros temas que exigem a nossa permanente reflexão. É ridículo evocá-la hoje, como se está a fazer neste mundo em vias de tabloidização, apenas pela liberdade sexual de que usufruiu ou como mera sombra de Sartre. Ridículo e escandalosamente «falocrata»…

«Le Magazine Littéraire», «Simone de Beauvoir – La Passion de la Liberté», Janeiro de 2008, 98 páginas