Oliveira Martins em 1945 e 2010

António Rego Chaves

Proferida em 14 de Maio de 1945, no Salão Nobre do Clube Fenianos Portuenses, por ocasião do centenário do nascimento de Oliveira Martins, esta conferência de Óscar Lopes traz a marca do tempo nas suas palavras finais. Ouçamo-las: «Sociologista e socialista com preconceitos morais individualistas e burgueses; moralista com transigências de oportunidade realista; homem de acção realista com idealismos quiméricos; idealista amante da vida como puro espectáculo – Oliveira Martins movia-se entre os compromissos que a sua geração não extremou bem para superar. Não nos cumpre fazer um juízo de valor, mas compreendê-lo dentro do momento histórico de que foi o ‘representative-man’, o ‘herói’ carlyliano, que quis ser. E, compreendendo-o, ajuizaremos implicitamente daquilo que tão-somente deve ser julgado: ajuizaremos de nós e da nossa época.»

Em 14 de Maio de 1945, a Segunda Guerra Mundial terminara na Europa, preparando-se a Grã-Bretanha do trabalhista Clement Attlee e os EUA do republicano Harry Truman para apoiar o «Estado Novo», oferecendo assim os seus préstimos para a sobrevivência da ditadura. Salazar decretara, no entanto, pouco tempo antes, «luto oficial» de três dias pela morte de Hitler, enquanto a Oposição ao regime manifestara, um pouco por todo o lado, o seu regozijo pela vitória dos Aliados e exigira liberdade política e sindical, democracia, eleições livres, o fim da censura, a libertação dos prisioneiros políticos e o encerramento do campo de concentração do Tarrafal. Em vão.

Neste contexto se escutaria Óscar Lopes quando falava «de nós e da nossa época». As «contradições» da Oposição Democrática, entre teoria e prática, pareciam evidentes – tal como, no século XIX, as de Oliveira Martins. Este desiludira-se «da propaganda socialista revolucionária, porque tinha consciência das condições técnicas de1875, e sobretudo num país sem grandes diferenciações sociais, porque se não industrializara»; como se desiludira «da federação ibérica republicana, porque a monarquia estabeleceu-se em Espanha em 74, e não se podia conceber no seu tempo a planificação económica com salvaguarda da autonomia política e cultural».

Diz Óscar Lopes: «Portugal não soubera ser capitalista; talvez soubesse ser socialista, pensava Oliveira Martins. Adaptando-se às condições concretas, fez-se socialista de Estado ou oportunista. Apoiou-se nos industriais do Porto; aderiu ao Partido Progressista, constituindo um grupo especial designado por ‘Vida Nova’. Na intriga política é batido por outros do partido arrimados em altos interesses bancários, ferroviários e moageiros.» Aproxima-se, depois, com um grupo de intelectuais e nobres, do futuro rei D. Carlos. Aceita ser ministro da Fazenda. Mas cai em 1892. Quinze anos volvidos, o então monarca comprometia-se numa ditadura sem filosofia progressiva, sem doutrina definida, apenas autoritária – a de João Franco.

Oliveira Martins «reage contra os princípios sagrados que tinham presidido à revolução burguesa; a Razão, a Liberdade, a Igualdade, a Propriedade não são para ele imperativos soberanos e só valem integradas logicamente dentro de certas antinomias ou contradições que se devem respeitar com fundamentos na moral e no direito público». Pretende que se crie uma nova definição da propriedade, entendendo dever subtrair-se desde logo, do domínio particular para o domínio público, a instrução, a higiene, a viação, o crédito, além da polícia e da assistência. Quer, por outro lado, que a propriedade industrial se torne cooperativa e que a propriedade agrícola seja cooperativa ou pessoal, consoante as necessidades das áreas cultivadas.

Por isso, dizia em 1945 Óscar Lopes – e talvez o possa repetir em 2010 – as concepções do economista Oliveira Martins «são cheias de interesse ainda hoje», enumerando-as: «o imposto progressivo e quanto possível directo, a nacionalização das vias-férreas e dos monopólios, a colonização preferentemente interna, o proteccionismo razoável, o apoio estatal às cooperativas de consumo, o código de trabalho e instituições preventivas de toda a inabilidade, a arborização intensiva do território, o restauro da marinha mercante, o desenvolvimento da instrução profissional.»

Mas o conferencista não se ficava por cautelosas entrelinhas nas suas referências ao contexto político vivido em1945. Avisava, então: «O racismo ariano e o racismo ibérico, a apologia da escravocracia peninsular e dum regime colonial de servidão em Angola são as contradições morais mais flagrantes que coexistem, por compromisso infeliz, com a moral estóica, plutarquiana, kantiana, herculaniana, de Oliveira Martins.»

António Sérgio chegou a afirmar que o «socialismo catedrático» de Oliveira Martins é «decepcionante e frágil, e adaptado a ser arma de um capitalismo cauto, paternalista e hipócrita – na aparência progressista, mas no essencial estático». Quanto a Vasco de Magalhães-Vilhena, foi ainda menos flexível: «Confessamos não perceber como é que um homem com a lucidez excepcional de António Sérgio pôde tomar a sério esse monumento de mentalidade teofilesca que constituem os dois tomos de Oliveira Martins, ‘Teoria do Socialismo’ e ‘Portugal e o Socialismo’.» Preferimos imitar Óscar Lopes quando se abstém de juízos de valor. Situemos o político na circunstância que em parte o condicionou, seguindo a lição de Joel Serrão: «Um dos fios essenciais da obra martiniana escapar-nos-á, irremediavelmente, se não explicitarmos assaz que a aposta socialista foi decisão irreversível no pensamento de Oliveira Martins. Embebido de Proudhon – tal como Antero – o ‘socialismo de cátedra’ que, na senda de Bernstein e Laveleye, adoptou mais tarde (…) nem está em desacordo com os ditames proudhonianos nem com o socialismo viável, após o desastre da Comuna de Paris (1871), na Europa burguesa e expansionista do último quartel do século» XIX. O que hoje parecerá «reaccionário» poderá ter assumido carácter bem «progressista» nos tempos da «Geração de 70»…

Óscar Lopes, «Oliveira Martins e as Contradições da Geração de 70», Biblioteca Fenianos, 1946, 47 páginas