Contra a «ditadura» romana («História do Ateísmo em Portugal»)

António Rego Chaves

Felicite-se o autor por ter ousado investigar em domínio tão mal conhecido como o do ateísmo no nosso País, procurando fazer a sua história: mas advirta-se desde já que não foram muitos os ateus que encontrou, embora talvez tenha detectado as mais evidentes explicações para o fenómeno. Simplificando, a vigilância e a repressão constantemente exercidas pelas autoridades civis e eclesiásticas sobre os não-crentes, a espúria aliança entre o Trono e o Altar que marcou quase oito séculos de vida em Portugal.

A nosso ver, certos pressupostos deveriam ter sempre acompanhado – e nem sempre acompanharam – este trabalho de Luís Ferreira Rodrigues: 1) a necessidade de distinguir entre fé e religião; 2) a necessidade de distinguir entre cristianismo ideal e cristianismo real; 3) a necessidade de distinguir entre anticlericalismo e indiferença religiosa, agnosticismo ou ateísmo.

Há missionários do catolicismo, mas há, também, militantes do ateísmo. Há uma intolerância católica – seja em relação às outras religiões, seja em relação à indiferença religiosa, seja em relação ao agnosticismo, seja em relação ao ateísmo; mas há também uma intolerância ateísta para com o catolicismo, os seguidores de outras religiões e, mesmo, os indiferentes e os agnósticos. O ensaísta não escapa a esta última, como antes dele milhões de «bons» católicos caíram na tentação de votar ao ostracismo todos os que não pensavam de acordo com os dogmas estabelecidos pela Igreja Romana.

A verdade é que Luís Ferreira Rodrigues procura ateus no Portugal Medieval – e não os encontra. Depois, no Portugal dos Descobrimentos, guiado pela mão experimentada do historiador António Borges Coelho, aponta um primeiro português sem Deus: Diogo Afonso, lavrador em Beja, preso pelo Santo Ofício em 1554: «em muitos lugares e perante muitas pessoas, afirmava que não havia senão nascer e morrer, ‘hoc est’, que juntamente com a vida fenecia a alma racional e que nenhuma diferença havia na morte dos homens mais no que na de todos os animais brutos, nos quais juntamente com o corpo fenece a alma sensitiva». Segue-se um tal Isaac Phelippe de Saint Mars, tenente francês apanhado pela Inquisição de Évora, que dizia terem sido as religiões inventadas por homens políticos «para conterem o povo e o fazerem obedecer ao que eles queriam». Mas, quanto a eruditos, nada: Francisco Sanches, apesar de católico, pensa nem sequer saber que não sabe nada, Uriel da Costa, também homem de dúvidas epistemológicas, apenas se interroga sobre a imortalidade da alma. Quanto aos «hereges», esses estão sempre longe de não acreditar em Deus – apenas recusam sentenças do Papado, mantendo, porém, bem viva a sua fé pessoal.

Chegado o Iluminismo, o panorama do ateísmo não é mais rico: Verney, teólogo, é «inimigo» de Maquiavel, Hobbes e Espinosa; o Cavaleiro de Oliveira, assumido anglicano; o Marquês de Pombal ia à Missa sempre que podia – o que não implica que morresse de amores pela Companhia de Jesus. Quanto à Maçonaria, a crença em Deus era seu timbre na época. Mesmo o matemático José Anastácio da Cunha, afastado da Universidade de Coimbra, fora acusado de se ter relacionado com…protestantes ingleses. No Romantismo, mantém-se o tom. Bocage, acerbo crítico de frades, combate o ateísmo; Herculano é crente e com harpa; Garrett escreve acerca dos londrinos: «Que Natal este! – sempre sois hereges, /Meus amigos ingleses. /Bem-haja o santo-padre e a sua bula/ De fulminante anátema.»

Enfim, chegam o Positivismo e as vésperas da República. Teófilo Braga, Basílio Teles ou Miguel Bombarda são ateus. Mas o mesmo não se pode dizer dos filósofos Silvestre Pinheiro Ferreira, Pedro Amorim Viana ou Sampaio Bruno, cuja inquietação metafísica se faz sentir em paralelo. Com a Revolução de 5 de Outubro de 1910, o Estado deixa de reconhecer o catolicismo como religião oficial do País, mas não decreta, nem Afonso Costa poderia decretar, o seu fim em pensamentos, palavras e obras. Os tempos difíceis que se seguiriam, que incluíram a Grande Guerra, uma profunda crise económica e social, a insistente instabilidade política, não foram propícios a grandes voos das especulações ateístas em Portugal.

Com o Estado Novo, acentua o autor, «o ateísmo passa a ser, não só uma reprovável opção filosófica, mas também – e fundamentalmente – uma ameaça política à matriz ideológica de um regime que se pretendia fortificado nos alicerces da base doutrinária católica.» (…) «O ateísmo já não era simplesmente uma opção blasfema: era também uma opção antipatriótica – e, como tal, inimiga do Estado.» (…) «O ateísmo é agora uma ‘infelicidade’ que afasta os espíritos da ‘melhor formação moral’ e da melhor ‘disciplina intelectual’. A partir de Salazar inverte-se o ataque de obscurantismo que a I República dirigiu à religião católica: o católico é agora o verdadeiro intelectual e o detentor da superior formação moral.»

Neste contexto, soam isoladas as vozes de um racionalista como António Sérgio, de um agnóstico como Raul Proença, de um ateu como Fidelino de Figueiredo. Para António Sérgio, Deus não passa de uma «ideia na consciência do homem». Raul Proença atreve-se a escrever: «Deus, se existe, deve ver nos ateus de elevada consciência moral os seus verdadeiros eleitos – porque não precisam de acreditar no juiz para amar a justiça, e de querer o seu bem para crer no bem.» (…) «Na verdade, só a plebe precisa de Deus e dos deuses. O aristocrata, o ‘senhor’, tem no ateísmo um dos seus mais belos timbres de nobreza: só ele pode fazer a arte pela arte.» Quanto a Fidelino de Figueiredo, como sintetizou Amorim de Carvalho, «não crê em Deus porque tem a certeza do zero absoluto da morte.»Eram vozes isoladas, sim, mas anunciavam já o fim da longa «ditadura» romana.

Luís Ferreira Rodrigues, «História do Ateísmo em Portugal – Da Fundação ao final do Estado Novo», Guerra e Paz, 2010, 383 páginas