Ideias «claras e distintas» (Marx)

António Rego Chaves

Eis um livro oportuno para a classe política portuguesa, que terá uma bela ocasião para aprender sem hercúleo esforço que Marx não era determinista, nem inimigo das liberdades individuais, nem da propriedade privada, nem da fé e da religião. Na verdade, «Marx esse Desconhecido» veicula ideias cartesianas, isto é, «claras e distintas» (o oposto de «obscuras» e «confusas»), acerca do autor de «O Capital».

Fazia falta, pois, por estas bandas lusitanas, um texto como este, sabendo-se como se sabe que, em tal matéria, mesmo os leitores portugueses «cultos» quase sempre foram avessos a ir além de preguiçosas consultas de suspeitos textos de propaganda comunista ou anticomunista. A tradição vem de longe: basta pegar nesse livrinho precioso que é «A Introdução do Marxismo em Portugal (1850-1930)», de Alfredo Margarido, para verificar que até «cabeças» da craveira de Amorim Viana, Antero de Quental ou Oliveira Martins, sob a influência de Proudhon, nunca se aperceberam da real relevância da ruptura operada no pensamento político ocidental por algumas das primeiras obras de Marx, como «A Sagrada Família» (1845), «Miséria da Filosofia» (1847) e, mesmo, o tão citado mas inúmeras vezes mal digerido «Manifesto do Partido Comunista» (1848). Sintetizou muito recentemente António Pedro Mesquita que «o facto, o facto nu e cru, é que não há marxistas em Portugal no século XIX».

Diz Arnaud Spire: «o grande mérito do pensamento de Karl Marx foi tornar possível a passagem de uma concepção sedentária do pensamento comunista – de que não é o fundador – para uma concepção nómada». Que quer isto dizer? Que o comunismo é «um alvo histórico sempre em movimento e absolutamente irredutível a princípios, sem os quais, todavia, não pode passar». Urge, pois, repensar as práticas políticas actuais, confrontar a imaginação com novas realidades como a globalização, criar um movimento que actualize passo a passo as tarefas revolucionárias definidas em meados do século XIX, sempre com o irrenunciável objectivo de pôr fim à «exploração do homem pelo homem». Evocando Jacques Derrida, o marxismo «é todo o contrário de uma verdade estabelecida de uma vez por todas» e até apela para «a transformação futura das suas próprias teses». Será necessária uma prova desta afirmação? Ei-la: Em 1872, num novo prefácio ao «Manifesto Comunista», escrevem Marx e Engels: «Dados os progressos enormes da grande indústria durante os últimos 25 anos e os progressos paralelos da organização da classe operária em partidos, dadas as experiências concretas, em primeiro lugar da Revolução de Fevereiro e muito mais ainda da Comuna de Paris que, durante dois meses, pela primeira vez pôs nas mãos do proletariado o poder político, este programa está actualmente caduco em determinados pontos. A Comuna, nomeadamente, demonstrou que a classe operária não pode limitar-se a pegar na máquina do Estado tal como ela é e a fazê-la funcionar por sua própria conta.» Que diriam em 2005? Decerto muito mais. Adianta o autor: «É evidente que Marx não tinha experiência da maneira como as “nacionalizadas” acabaram por servir o capital em França ou da maneira como o sector do Estado refreou a iniciativa privada na Rússia.»

Sintomático da evidente má fé com que muitas vezes se ataca o marxismo é que Arnaud Spire se veja forçado a escrever, ainda hoje, em França: «O pensamento de Marx situa-se no oposto do colectivismo obsessivo que comentadores mal intencionados muitas vezes lhe atribuíram. Já não se trata, para o autor de “O Capital”, nem de introduzir a “comunidade dos bens”, nem de proclamar a “comunidade das mulheres!”. Aliás, foi o próprio «Manifesto» que sustentou a tese segundo a qual «o livre desenvolvimento de cada um é a condição do livre desenvolvimento de todos» – e não, como se tem tantas afirmado, que «o livre desenvolvimento de todos é a condição do livre desenvolvimento de cada um».

«Duvida de tudo» – esta era a divisa preferida do pseudodogmático Karl Marx. Poderá ela conciliar-se com o determinismo? Ou será que estamos perante um pensamento tanto da necessidade como da possibilidade? O comunismo seria, para o filósofo, um «futuro obrigatório», mais do que «um movimento crítico sem fim»? É altura de evocar a epistemologia de Ilya Prigogine, Nobel da Química em 1977, já objecto de um estudo de Arnaud Spire, aliás também traduzido para português por iniciativa do Instituto Piaget, com o título «O Pensamento Prigogine». Para o cientista russo-belga, «vivemos numa época em que o aleatório precede a certeza e em que a pluralidade dos futuros invade todos os sectores do conhecimento e da acção». Na verdade, parece hoje incontestável que o determinismo dos filósofos e sábios do século XIX foi superado pela ciência do século XX. Daí mais uma razão para pensar que, «se leis da história há, só podem conjugar o longo prazo e o acontecimento. São, pois, por essência, possibilistas.» Urge, então, libertar Marx de quaisquer interpretações positivistas, ultrapassando a dicotomia determinismo científico/ liberdade humana. Em conclusão: «Coexistência, reconciliação. Tais são as palavras-chave do pensamento prigoginiano. Reconciliação do homem com a natureza, reconciliação da ciência com a filosofia. Duas actividades que andam a par, já que a ciência é um diálogo com a natureza que, ao mesmo tempo, nos informa sobre a posição do homem na natureza. O que é um problema filosófico.»

A terminar, uma nota portuguesa: o racionalista Sílvio Lima fez publicar, corria o ano de 1943, um belo ensaio que intitulou «O Determinismo, o Acaso e a Previsão na História». Nele referia as teorias do Nobel da Física de 1932, Werner Heisenberg, contrapondo-as ao determinismo «forte» de Isaac Newton. E, em relação às ciências históricas, escrevia: «Determinismo forte? Não, possibilismo e contingência. A «físis» de Newton e Laplace não é… a natureza humana; as brutas massas planetárias gravitantes no espaço não são…os homens no tablado da Vida e da História.» Hoje, os cientistas sabem que Sílvio Lima estava equivocado ao pretender integrar o princípio de indeterminação de Heisenberg naquilo a que persistia em apelidar de «determinismo», ainda que «fraco»; quanto à sua consensual concepção do indeterminismo na História, cremos que Marx não teria hesitado em subscrevê-la.

Arnaud Spire, «Marx, esse Desconhecido», Instituto Piaget, 2004, 117 páginas