Dizer ou não dizer «ámen» (Hans Küng)

António Rego Chaves

No fim da primeira parte das «Memórias» de Hans Küng, que termina em 1968, o grande teólogo suíço conta apenas 40 anos. Desabafa: com essa idade, eu poderia ter escolhido ser tão «importante» como o cardeal Joseph Ratzinger (actual prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, ex-Santo Ofício, vulgo Inquisição); por que motivo não subi tão alto quanto ele (ou desci tão baixo, depende da perspectiva)? Veredicto: porque não disse «sim» e «ámen» a tudo o que queriam que eu dissesse «sim» e «ámen». Porque investiguei, pensei e escrevi o que entendi dever investigar, pensar e escrever; porque não me submeti, não me adaptei, não me retractei após as intimidações, as reprimendas e as punições da hierarquia eclesiástica; porque não desisti de lutar pelo que me pareceu justo e não renunciei, com a inteligência, o coração e a vontade, à liberdade de consciência – que, longe de me ter sido oferecida pelo totalitarismo espiritual do Vaticano, tive de conquistar a pulso, dia após dia, ao longo de toda a existência.

Evocando o carreirismo de Ratzinger (que, tal como ele, discordou na juventude do poder absoluto do Sumo Pontífice, defendeu a liberdade dos teólogos, denunciou o «maximalismo mariano» como impedimento para o ecumenismo), Küng reproduz o que declarou na Universidade de Tubinga, ao jubilar-se, em 1996: «Não pude seguir outro caminho, não só por causa da liberdade, que sempre me foi querida, mas também por causa da verdade, que está ainda acima da minha liberdade. Se o tivesse feito (…) teria vendido a minha alma pelo poder na Igreja. E o que mais desejaria é que o meu companheiro de idade e caminho Joseph Ratzinger, que escolheu o outro caminho, ao olhar para trás (e digo isto sem a menor sombra de ironia, ainda que com a maior dor), pudesse ser tão feliz e estar tão contente como eu.»

Ouvida esta voz de quem, ao contrário de Fausto, se recusou a «vender a alma» ao Diabo, é impossível não a associar a eminentes teólogos como Henri de Lubac, Yves Congar, M. D. Chenu ou Teilhard de Chardin, a seu tempo humilhados, silenciados e marginalizados por Pio XII, por «terem tido razão antes de tempo»; ou, mais recentemente, a Eugen Drewermann, Edward Schillebeeckx, Leonardo Boff ou Charles Curran. Mas, acima de tudo, o que fica em foco neste livro tão lúcido quanto apaixonado de Hans Küng é, sem dúvida, o acontecimento mais discutido da história da Igreja Católica do século XX: o Concílio Vaticano II (1962-1965). Terá valido a pena o esforço de renovação?

A resposta do teólogo – que viveu por dentro, como perito, tudo o que se passou em Roma –, é inequívoca: sim, valeu a pena. Apesar das intrigas palacianas, das manobras de bastidores, dos golpes baixos, das manipulações dos tradicionalistas (o Vaticano não deixa de ser um microcosmo do cinismo, da competitividade e da mediocridade reinantes na generalidade das relações entre oficiais do mesmo ofício), valeu a pena. Valeu a pena mais pelas janelas que abriu para o futuro do que pelos resultados obtidos a curto ou médio prazo, tenazmente combatidos pelo então todo-poderoso cardeal Ottaviani, o «Grande Inquisidor», e pelo «núcleo duro» do ex-«Santo Ofício». O Concílio ganhou algumas batalhas – mas perdeu a guerra.

Certo que o retrocesso verificado sobretudo depois da eleição do actual «Papa polaco» – que proibirá Hans Küng de ensinar na qualidade de católico –, não permite grandes optimismos em 2004: entre as inovadoras teorias expostas nos textos do Vaticano II e a «praxis» vigente subsistem, por vezes, diferenças abismais. É indiscutível que a reforma da estrutura eclesial passou a ser tomada a sério, que a Bíblia foi valorizada na liturgia e na teologia, que os leigos viram aumentar a sua participação na vida da comunidade, que responsáveis católicos já dialogam hoje, quase de igual para igual (sublinhe-se o injustificável «quase») com alguns (releve-se também o injustificável «alguns») representantes de outras igrejas cristãs e não-cristãs. Também é indiscutível que o Índex dos livros proibidos jaz morto e semi-sepultado na vala comum das mais execráveis aberrações da história da (in)cultura. No entanto, questões como a eleição do Papa pelo sínodo dos bispos, a infalibilidade pontifícia, o funcionamento das instâncias hierárquicas, o controlo da natalidade, a regulamentação dos matrimónios mistos, a orientação sexual, a ordenação das mulheres ou o celibato dos padres estão longe de ter encontrado uma solução adequada aos imperativos dos tempos modernos. E, se aflorarmos os complexos problemas teológicos que são as frequentes discrepâncias entre as Escrituras e a Tradição, o ecumenismo, a doutrina da justificação (Hans Küng demonstrou não haver neste campo discordância substancial entre o célebre teólogo protestante Karl Barth e o catolicismo), então tememos que o entendimento entre eclesiásticos conservadores e reformadores se torne inalcançável nos próximos anos.

Atravessando, até 1968, três pontificados – os de Pio XII, João XXIII e Paulo VI – Hans Küng não se inibe de apontar a quem se dirigem as suas simpatias: apenas «um Papa que era cristão» (Hannah Arendt «dixit»), «servidor de Deus e servidor dos servidores de Deus», «o primeiro Papa ecuménico», o atraiu. Mas não deixa de apontar ao «bom Papa João» alguns involuntários erros que hoje poderemos considerar terem sido «fatais» para o êxito do Vaticano II, como o de aceitar presidir a uma Cúria que repudiava o «aggiornamento» e o ecumenismo e que se empenharia em esvaziar de conteúdo reformista as decisões do Vaticano II. Por ingenuidade, por inabilidade estratégica, por força da inércia, Ângelo Roncalli não alterará o «núcleo duro» da Cúria, confirmando nos seus cargos todos os cardeais anti-reformistas, deixar-se-á tolher pela resistência passiva dos burocratas romanos, criará uma «corte» de arcebispos sem dioceses, colocará inimigos da reforma precisamente à frente de comissões da reforma. Concluindo: «O Concílio e a Igreja terão de carregar com a falta de pulso directivo do Papa», embora o latim, símbolo litúrgico do poder da Cúria, venha a cair e a dar lugar ao uso das línguas «vulgares» na Eucaristia. Por uma vez, o altar foi ao encontro dos povos.

Na revista «Concilium», da qual foi um dos fundadores, e no conjunto da sua monumental obra («A Igreja», «Infalível?», «Ser Cristão», «Deus Existe?», «Credo», «Vida Eterna?», «O Judaísmo», «O Cristianismo», etc.), «Hans Küng, hoje com 76 anos, exporá, justificará e consolidará as suas arrojadas concepções teológicas, sempre sob os olhares inquisidores da Cúria, do Opus Dei e da neoescolástica. Veremos, no segundo volume das «Memórias», o que se passou nas caves do Vaticano. Sinal dos tempos, a Igreja Católica já não podia tratar o teólogo de maneira tão bárbara como a que utilizou com Giordano Bruno, São João da Cruz ou Galileu. Mesmo assim, talvez algum Papa venha um dia a apresentar-nos desculpas pela forma escandalosamente anticristã como foi ofendido um dos maiores pensadores cristãos contemporâneos. Mas então poderá ser já, para todos, tarde de mais…

Hans Küng, «Liberdade Conquistada – Memórias», Editorial Trotta, 2003, 620 pag., 36 €