O enigma de Brasillach (Anne Brassié)

António Rego Chaves

Libelo acusatório ou tentativa de reabilitar de um dos mais influentes intelectuais colaboracionistas franceses, a par de Céline, Drieu la Rochelle, Lucien Rebatet? Nem uma coisa nem outra – garante a autora. Não será bem assim: sem dúvida muito mais tentativa de reabilitação do que libelo acusatório, ainda que os factos fundamentais que levariam à condenação estejam contidos nesta biografia política e literária de Robert Brasillach, executado em 6 de Fevereiro de 1945 por «cumplicidade com o inimigo».

Era então um homem de 35 anos, já autor de notável obra literária («Comme le temps passe», «Les sept couleurs», «Notre avant-guèrre»), de uma «Histoire du Cinéma» (com Maurice Bardèche, seu cunhado e grande amigo), de centenas de artigos nos jornais «Action française», «Je suis partout», «Révolution nationale». «Polemista agressivo e virulento», mas também poeta, «romancista da felicidade e da ternura», germanófilo, fascista e anti-semita, admirador de José Antonio Primo de Rivera, o seu destino evidencia bem a necessidade de colocar sem rodeios uma questão maior da história europeia: a da responsabilidade política dos intelectuais.

Esses homens que apelaram para a exclusão – e mesmo para o assassínio – de judeus, democratas, comunistas, esses homens que, por ideologia ou por cupidez, se aliaram ao invasor nazi, esses homens que tudo fizeram para manter o seu país sob o jugo do inimigo secular, estavam ou não estavam conscientes do que faziam, deviam ou não deviam ser julgados após a sua derrota física, política, moral? Robert Brasillach pareceu julgar que não – e manteve sempre, perante o tribunal que o condenou, essa «fé» pessoal.

Há pelo menos uma mancha indelével em todo este «caso»: para que o escritor se entregasse, as autoridades não olharam a meios; prenderam o cunhado, Maurice Bardèche, o padrasto, a mãe. Só então, sabendo-se causador involuntário das detenções efectuadas, Brasillach decidiu sair do quarto onde estava escondido, apresentando-se aos agentes policiais. Dir-se-ia que os métodos nazis tinham frutificado em França, tendo o vencido de ontem e vencedor de hoje assimilado sem pudor os hábitos da Gestapo.

Como jornalista tinha «exigido» (aos alemães e seus apoiantes franceses) a morte dos «terroristas» da Resistência, tornara-se cúmplice da denúncia de judeus à Gestapo, chamara «traidores» aos gaullistas e «canalhas» aos chefes de «maquis». No tribunal, o procurador Marcel Reboul, um católico, será implacável, mas não o desrespeitará: «A sua traição é uma traição de intelectual. É uma traição de orgulho. Este homem cansou-se do confronto no calmo terreno das letras puras. Quis uma audiência, uma praça pública, uma influência política – e revelou-se disposto a tudo para as conquistar.»

Robert Brasillach defende-se citando-se a si próprio: «Em caso de perigo, é sempre à nação que devemos ligar-nos.» Marcel Reboul não lhe tolera que se refugie na ambiguidade: «Qual é então essa França à qual pretende ligar-se em caso de perigo? É mesmo a França? Não, é uma França castrada, uma França de que foram retirados os judeus, por sistema, os católicos por causa do Papa [Pio XII, o do ‘ensurdecedor silêncio’ sobre as atrocidades nazis!], os protestantes por causa da Inglaterra, os comunistas por causa de Moscovo, os socialistas por causa de Léon Blum, os radicais por causa de Daladier, os republicanos por causa da República, os gaullistas por causa de De Gaulle e os resistentes por causa da Resistência? É muita gente…»

O célebre advogado Jacques Isorni, hábil defensor de comunistas durante a Ocupação e de colaboracionistas após a Libertação, lê declarações abonatórias de Marcel Aymé, Paul Valéry, Paul Claudel, François Mauriac, argumenta que o seu constituinte não previu as graves consequências dos ataques que desferira contra judeus, democratas, comunistas. E pergunta, eloquente: «Os povos civilizados fuzilam os seus poetas? A Revolução Francesa engrandece-se quando se recorda André Chénier [guilhotinado em 1794]? Que punição, reservais, então, aos mercadores de canhões?» (Recordemos, entre parênteses, uma sentença de Robespierre: «Nenhuma raça é mais perigosa para a liberdade, mais inimiga da igualdade, do que a dos aristocratas da inteligência, cujas reputações isoladas exercem uma influência parcial, perigosa, e contrária à unidade que tudo deve reger.») Mas o causídico não se fica por aqui, visa o Tribunal: «A vossa instituição, o ministério público, faz ouvir hoje as fanfarras da Resistência. Está bem… Mas vós fostes, durante quatro anos, representantes do colaboracionismo.»

No jornal ‘L’Aurore», Francine Bonitzer escreverá o que muitos julgam essencial: «Não censuramos Brasillach por ter sido fascista, mas por o ter proclamado quando aquele que nos mantinha sob a bota era fascista; não o censuramos por ter sido anti-semita, mas por o ter proclamado quando os judeus eram perseguidos; não o censuramos por ter sido anticomunista, mas por o ter proclamado quando os comunistas eram acossados.»

Cinquenta e cinco nomes sonantes pedirão a de Gaulle o indulto do condenado. Entre eles, Paul Valéry, François Mauriac, Georges Duhamel, Paul Claudel, Jean Anouilh, Jean Cocteau, Marcel Achard, Albert Camus, Marcel Aymé, Colette, Gabriel Marcel. Claude Roy retira a sua assinatura, por «ordem» do PCF; Picasso recusa-a, pela mesma razão. Elsa Triolet explica por que não assina: «Se não os matamos, são eles quem nos mata.» Malraux, aliás, dissera já a La Rochelle, pouco antes da Libertação: «Sabe, meu caro Drieu, as nossas discussões não têm nenhuma importância, se os comunistas tomarem o poder seremos ambos fuzilados – e por Aragon.»

Jacques Isorni é recebido por de Gaulle. Recorda-lhe que o pai de Robert Brasillach morreu pela pátria, invoca a «reconciliação dos franceses». O general permanecerá de pedra. Três dias depois, o «collabo» será fuzilado.

Anne Brassié, «Robert Brasillach», Robert Laffont, 1988, 421 páginas