Mil anos de religião (Jacques Le Goff)

António Rego Chaves

Jacques Le Goff é considerado um discípulo de March Bloch e Lucien Febvre, os fundadores, em 1929, da revista Annales. Referência mundial como historiador da Idade Média, tal como Georges Duby e Emmanuel Le Roy Ladurie, socorre-se de um saber interdisciplinar – incluindo a geografia, a economia, a sociologia, a política, a etnologia, a arqueologia, a psicologia, a linguística, a arte, a literatura, a religião – para estudar a vida quotidiana e as mentalidades características dos quase mil anos que decorreram entre o fim do Império Romano do Ocidente (476) e a tomada de Constantinopla pelos turcos (1453).

«Le Dieu du Moyen Age» é uma longa entrevista concedida pelo grande medievalista a Jean-Luc Pouthier, chefe de Redacção do «Monde de la Bible». Le Goff revela-nos aqui alguns dos «segredos» da sua investigação, que o levou já a publicar mais de duas dezenas de livros, desde «Os Intelectuais na Idade Média» às biografias de São Luís e de São Francisco de Assis, passando pela monumental obra de referência que é «A Civilização do Ocidente Medieval».

Explica o autor: «A imagem de Deus numa sociedade depende, como é evidente, da natureza e do lugar daquele que imagina esse Deus. Existe um Deus dos clérigos e um Deus dos leigos; um Deus dos monges e um Deus dos seculares; um Deus dos poderosos e um Deus dos humildes; um Deus dos pobres e um Deus dos ricos. Tentámos apreender esses diferentes “Deus” em torno de alguns dados essenciais: o Deus da Igreja, Deus da religião oficial; o Deus das práticas, que na Idade Média são fundamentalmente religiosas, antes de emergirem aspectos profanos. São os dogmas, as crenças, as práticas que nos interessam, na medida em que definem e deixam perceber a atitude dos homens e das mulheres da Idade Média em relação a Deus.»

Terá sido o monoteísmo uma «verdade» de facto vivida pelos cristãos medievais? Le Goff faz notar que o Deus concreto dos homens e das mulheres da Idade Média foi, sucessivamente, um idoso, autoritário e protector Deus Pai; um jovem, humilde e indefeso homem imolado por homens do seu tempo; ou, até, o Deus Espírito Santo, subtil e misteriosa ave protectora de confrarias, universidades e hospitais, cujo «habitat» se situava nos espaços urbanos. Ao lado desta Trindade, surge, ainda, o que quase poderíamos chamar um quarto Deus – a Virgem Maria. Neste contexto, a interrogação impõe-se aos investigadores: poder-se-á falar de um politeísmo medieval? O entrevistado responde, talvez correndo o risco de escandalizar os que crêem em verdades eternas, válidas fora do espaço e do tempo em que são «descobertas» e propagadas, depois de salientar que existiu na Idade Média não só o poderoso Deus majestático, representado no seu longínquo trono intangível, como o Deus crucificado cujo corpo sem vida repousa sobre os joelhos da Mãe: «Existe para o historiador, e por consequência no saber humano, uma história de Deus.»

Como é sabido, no século IV, precisamente em 392, o cristianismo deixa de ser uma religião perseguida para se tornar numa religião do Estado e o Deus rejeitado adquire, com o imperador Teodósio, o estatuto de Deus oficial. Os grandes santos do início da Idade Média serão conhecidos como implacáveis destruidores de templos «pagãos», isto é, consagrados aos «falsos deuses» da Antiguidade Clássica. Mas, no século XI, certas vozes consideradas «heréticas» contestarão o hábito de a hierarquia católica construir igrejas, argumentando que Deus, porque omnipresente, não necessita de edifícios especiais destinados ao culto. Sendo o instrumento essencial do culto a oração, o seu lugar privilegiado só pode ser o coração dos crentes, homens ou mulheres.

As heresias (do termo grego «haíresis», escolha) sucediam-se desde os séculos IV e V: o arianismo sustentando que Jesus não possuía senão uma natureza humana; o nestorianismo, ensinando a separação das duas naturezas do Cristo, a divina e a humana; o monofisismo, pretendendo que Jesus tinha uma única natureza, a divina, que teria absorvido a sua natureza humana; o pelagianismo, rejeitando a doutrina do pecado original, privilegiando o livre arbítrio e negando a necessidade da graça. O poder religioso não pudera impedir os clérigos mais esclarecidos de pensar e questionar a sua fé – e nos últimos séculos da Idade Média, com a proliferação das universidades e do ensino da teologia, o problema vai agravar-se, manifestando-se a tarefa de silenciar em definitivo as vozes dissidentes, mesmo com o inestimável contributo das fogueiras da Santa Inquisição, cada vez mais condenada ao malogro.

A Igreja sente que o seu nada negligenciável poder temporal corre o risco de se esboroar, tanto mais quanto se assumiu durante séculos como incondicional garante da ordem estabelecida na sociedade feudal. Por isso a hierarquia eclesiástica faz questão de acentuar a todo o momento que o homem não se pode salvar senão devido à Igreja e graças à Igreja. Aliás, a instituição tolera com indisfarçada incomodidade quaisquer sinais de mística solitária, como os emitidos pelos eremitas e anacoretas que não querem desistir de estabelecer uma relação directa com Deus, prescindindo da mediação dos seus autoproclamados representantes na Terra. Incita os que se querem afastar do mundo a viver em comunidade, pois sabe que a eficácia da sua intervenção social e política depende, em grande parte, da solidez da organização, da firme coesão e da imprescindível unidade de acção do seu «exército», o clero. O culto pretende-o colectivo e devidamente enquadrado, rigidamente regulamentado, tal como o baptismo, a confissão auricular, a oração ou a confirmação. Recorda Le Goff: «Um outro meio utilizado pela Igreja para manter a sua situação privilegiada entre Deus e os fiéis foi, durante muito tempo, fazer Deus falar em latim.»

A Reforma de Lutero (1483-1546) porá ao alcance dos crentes uma nova forma de acesso ao Deus dos cristãos, sem dúvida mais conciliável com a liberdade de consciência do que a encontrada pelas autoridades eclesiásticas na Idade Média.

Jacques Le Goff, «Le Dieu du Moyen Âge», Bayard, 2003, 103 páginas