Baptista-Bastos («No Interior da Tua Ausência»)

Um leopardo entre chacais

Baptista-Bastos regressa com novo romance. Será um testamento do homem, do cidadão, do escritor? Assim não seja…

António Rego Chaves

Lê-se este livro até à última página e conclui-se: eis um homem liquidado. Liquidado pela vida, pelo correr do tempo, pelo passado colectivo – isto é, pelas(s) mulher(es) que amou, pela idade, pelos factos históricos que o marcaram. Porque são dolorosas todas as idades, mas nem todas serão belas – e o narrador de No Interior da Tua Ausência, talvez um virtual Baptista-Bastos, vai-nos demonstrando, página a página, que viveu ou viu viver tudo ou quase tudo o que poderia viver ou ver viver. E também que não tem mais razões para esperar o amor, a plenitude das suas faculdades, a justiça social.

Quer isto dizer que estamos perante uma espécie de testamento do homem, do cidadão, do escritor? Talvez, se pensarmos que um testamento é algo que todos os dias pode ser alterado, corrigido, virado do avesso. E que a realidade se revela sempre multifacetada – tal como o narrador que se encontra no centro deste romance, que é simultaneamente um resistente habitual e um potencial desistente. Resistente ao absurdo da velhice, da doença e da morte, desistente perante uma mulher e um filho que deixaram de o amar, os amigos que vão morrendo, uma certa camada etária jovem com a qual é obrigado a coexistir e até, eventualmente, a conviver, mas que repudia ou ignora a sua mundividência, o seu passado, os seus valores éticos.

Talvez se possa sintetizar tudo assim: Baptista-Bastos fala em nome da sua geração para proclamar, urbi et orbi, quanto se sente maltratado, desrespeitado, injustiçado, «numa época que despreza o envelhecimento das pessoas, para ceder a um supersticioso e selvagem encantamento pela juventude». Aliás não fala, grita muito alto, porque sabe que só assim terá a possibilidade de ser ouvido pelo Portugal dos pequeninos interesses, das pequeninas falas, dos pequeninos moluscos em busca de mordomias. Ao homem liquidado já lhe falta alento para se revoltar: torna-se melancólico, assume «a desilusão árdua em que mergulham os desamados», dá-se conta do «vazio da dor». E reivindica a memória. Memória de lugares, de corpos de mulher, de amigos mortos – suas âncoras, suas bandeiras, seus fantasmas.

«A vida é perda. Vamos perdendo tudo aos poucos, devagar ou depressa, mas vamos perdendo. A idade, os sonhos, a energia, o amor.» Será verdade? Vivemos no interior da ausência de uma mulher, da velha cidade, dos amigos, tornámo-nos anacrónicos? «Faltava-nos o fascismo para nutrir a esperança e justificar o vazio», murmura o narrador. «O medo que o fascismo infundia era-nos propício porque tornava mais claros os comportamentos, as recusas e as aceitações. Faltava-nos o medo. O medo não é o contrário da coragem. Nasce-se com o medo dentro de nós; o medo é parte integrante da condição humana. A coragem aprende-se. O medo não é derrotado pela coragem: é vencido pela honra. A honra não tem medo de nada. A coragem tem medo de tudo.»

Esta a voz do homem liquidado pelo correr implacável dos tempos, de quem sabe que «a vida é perder amigos». É uma voz ferida que emerge da noite algures num quarto solitário no meio da cidade, «uma antiga e submersa esperança» já sem forças para continuar a luta diária e sem tréguas contra a mesquinhez, a mediocridade, o esquecimento. E é também a voz de um homem que quer aproveitar «o tempo que resta», o tempo que lhe resta, o tempo que nos resta, para dizer que deixou de conseguir encontrar um sentido para a sua existência, que «a nossa vida é mais pequena do que os nossos sonhos», até que nem quereria voltar ao passado, mesmo que isso fosse possível. Um homem que, sentado à beira da sua cama, «ambas as mãos sobre os joelhos», é, de súbito, «invadido por intensa serenidade».

A intensa serenidade de uma geração de velhos leopardos que escolhe retirar-se de vez, para não ser mais humilhada num implacável reino de chacais.

Baptista-Bastos, «No Interior da Tua Ausência», Asa, 2002, 201 páginas

Publicado no «Diário de Notícias» em 20.11.2002