Portugal em 1870... e 2009

António Rego Chaves

O jornalista espanhol Gonzalo Calvo Asensio ocupou, a partir do início da Revolução de Setembro de 1868, contra a rainha Isabel II e o governo ditatorial presidido por Gonzalez Bravo, o cargo de secretário da Legação do seu país em Lisboa. Eleito em 1872 deputado às Cortes, o Congresso nomeá-lo-ia a seguir seu secretário. Pertenceu à direcção do Partido Democrático-Progressista e foi director do jornal «El Democrata».

Este curto mas incisivo texto, ainda que por vezes denote algumas deficiências no conhecimento da cultura portuguesa oitocentista, oferece não poucos motivos de interesse para o curioso que o aborda em pleno século XXI. Recorde-se: no ano de 1868, Antero de Quental publicara «Portugal perante a Revolução de Espanha», autor e obra estes que, estranhamente, Calvo Asensio nunca menciona no seu texto. No ano seguinte, é oferecida a D. Fernando II, viúvo de D. Maria II, a Coroa de Espanha, que foi recusada. Finalmente, em 1870, é publicado «O Mistério da Estrada de Sintra», de Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz, e começa a ser editada a «História da Literatura Portuguesa», de Teófilo Braga. Ambas as obras, tal como os seus autores, são ignoradas pelo jornalista, apesar de consagrar um capítulo à nossa literatura, no qual se limita a relevar, no que se refere ao século XIX, os nomes de Almeida Garrett e Alexandre Herculano, apontando brevemente os de Castilho, Tomás Ribeiro, João de Deus, Luís Augusto Palmeirim, Soares dos Passos, Bulhão Pato, Mendes Leal, Eduardo Augusto Vidal, João de Lemos, Gomes de Amorim, Andrade Corvo, Camilo Castelo Branco, Lopes de Mendonça, Pinheiro Chagas, Júlio Dinis e Silva Gaio. As grandes «vítimas» das omissões são, assim, os corifeus da «Geração de 70», Antero, Eça e Oliveira Martins.

O principal mérito desta obra, cujo título e subtítulo são «Lisboa em 1870 – Costumes, Literatura e Artes do vizinho reino» –, reside, a nosso ver, nos textos consagrados ao iberismo, ao papel do clero na sociedade e à vida política. Ao abordar estes temas, Calvo Asensio lança um penetrante olhar sobre tudo o que lhe é dado ver e que, aliás, não poucas vezes é muito semelhante ao que conhece do seu próprio país. Afirma o autor, referindo-se às relações entre Portugal e Espanha: «Temos o mesmo passado; registamos nos nossos fastos as mesmas glórias; sofremos as mesmas desgraças; o mesmo grau de abatimento alcançámos pela nossa desventura no presente, e o mesmo é o porvir que se nos abre, e, apesar de tudo, nem nos relacionamos nem nos conhecemos.» Referindo-se, depois, ao conceito de «união ibérica», comenta: «Jamais tão nobre e patriótica ideia produziu, até ao presente, mais desagradáveis resultados; jamais ideia tão conforme ao espírito da unidade nacional, filha da descentralização e da autonomia municipal, que não da centralização e do absolutismo, suscitou mais infundados receios e mais injustificadas desconfianças.» E conclui: «Borbons (sic) e moderados foram-se para não mais voltarem, a Espanha da Revolução [de 1868] emendará, sem dúvida, erros passados…»

Quanto à influência clerical, considera o autor: «Portugal não é completamente livre: porque não sacudiu por inteiro o jugo da Igreja, em matérias religiosas sente ainda a tradição pecaminosa dos períodos de D. João V e de D. Maria I, não havendo podido todavia limpar-se para sempre do seu original pecado nas puras águas do moderno Jordão – a democracia.» Mas o espanhol manifesta-se optimista em relação ao futuro ibérico: «Muito já adiantou a Península nesse caminho [de desinfectar a atmosfera dos miasmas clericais e reaccionários que a empeçonham]; mas muito lhe resta ainda para fazer; a verdade há-de abrir, por fim, caminho, e uma vez no alto, nem insensatas traições, nem ridículas negaças, nem mentiras saturadas de misticismo, nem fanáticas intenções habilmente exploradas, poderão restaurar aquela fé cega, engendradora da ignorância, que tanto contribuiu para sustentar todos os despotismos e que durante tanto tempo manteve viva a fétida chama dos braseiros inquisitoriais.»

A governação merece ao autor as seguintes observações: «A luta política está hoje reduzida à das ambições pessoais; não há partidos com bandeira, nem agrupamentos políticos com lemas bem definidos, nem programas que preencham uma aspiração racional ou científica; não há mais do que a personalidade do duque de Saldanha, oposta à do duque de Loulé, ou a do bispo de Viseu à do Conde de Ávila (…); e a estas futilidades, a estas misérias de bastidores, se encontra reduzida toda a política do lusitano reino, que a tal extremo de desorganização nestes últimos tempos chegou, por mal dos seus homens políticos e das suas eminências literárias. Hoje em dia os partidos não se distinguem, os homens não representam ideia alguma, nem os periódicos se apresentam na palestra armados para a defesa de determinadas teorias: não há mais do que homens sem significação política, por mais que alguns a tenham pessoalmente em alta conta. Aqui não há progressistas nem moderados, (…) radicais nem reaccionários; aqui não há partido conservador, nem partido reformista: aqui as situações políticas que se seguem umas às outras nem apresentam programa distinto das que as precederam, nem se formam por uma necessidade de realizar uma ideia, ou de reformar uma instituição (…); aqui não há mais do que individualidades – que aspiram ao poder, sem princípios, sem ideias, sem sistemas definidos e acentuados, e que o obtêm ou o perdem por intrigas pessoais, ou por rixas e animosidade… (…) Em Portugal, quem representa os conservadores, Saldanha ou Loulé ou o conde de Ávila? Não se sabe. O que representam então? Representam-se a si próprios.»

Basta substituir os nomes de Saldanha, Loulé e Ávila pelos de três actuais líderes partidários para o leitor encontrar a chave que lhe revelará as suas «originais» tácticas e estratégias neste enfadonho Verão político de 2009...

Gonzalo Calvo Asensio, «Lisboa em 1870», frenesi, 2009, 133 páginas