FÉ-ESPERANÇA-CARIDADE

Publicado por VATICAN NEWS

Primeira Pregação do Advento 2022 com Fr. Raniero Cantalamessa

"Vamos ao encontro de Cristo que vem, com um ato de fé, que é também uma promessa de Deus e, portanto, uma profecia: o mundo está nas mãos de Deus e, quando, abusando da sua liberdade, o homem terá chegado ao fundo, ele intervirá para salvá-lo. Sim, intervirá para salvá-lo! Para isso, de fato, veio ao mundo, há dois mil e vinte e dois anos."

Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap.

A PORTA DA FÉ

Primeira Pregação do Advento de 2022

Santo Padre, Reverendos Padres, irmãos e irmãs da Cúria Romana, perguntei-me várias vezes sobre qual o sentido e a utilidade destas pregações no Advento e na Quaresma, que interrompem ou atrasam compromissos de todo tipo e importância. O que me anima e me tira os escrúpulos de fazê-los perder tempo, é a convicção de que não se vem a estas pregações para escutar opiniões ou soluções para problemas eclesiais do momento, mas para haurir forças das verdades de fé e, assim, encarar todos os problemas com espírito certo. Para, enfim, banhar-se – ou ao menos refrescar-se – de fé, de esperança e de caridade.

Assim, pensei em escolher como tema destas três pregações de Advento justamente as três virtudes teologais. Fé, esperança e caridade são o ouro, o incenso e a mirra que nós, Magos de hoje, queremos oferecer como dom a Deus que “vem nos visitar do alto”. Valendo-nos da tradição antiga – patrística e medieval – sobre as virtudes teologais, tentarei – por quanto possível fazê-lo em três breves meditações – uma aproximação também moderna e existencial, que responda aos desafios, aos enriquecimentos e, às vezes, aos substitutos propostos pelo homem de hoje às virtudes teologais do cristianismo.

* * *

Na oração cristã, sempre teve grande ressonância o salmo que – na versão da liturgia – diz:

Ó portas, levantai vossos frontões!

Elevai-vos bem mais alto, antigas portas,

a fim de que o Rei da glória possa entrar.

Dizei-nos: “Quem é este Rei da glória?”

“É o Senhor, o valoroso, o onipotente,

o Senhor, o poderoso nas batalhas!” (Sl 24,7-8).

Na interpretação espiritual dos Padres e da liturgia, as portas de que se fala no salmo são aquelas do coração humano: “Feliz aquele a cuja porta Cristo bate”, comentava Santo Ambrósio. “Nossa porta é a fé... Se quiseres levantar os portais de tua fé, entrará em ti o Rei da glória”[1]. São João Paulo II fez, das palavras do salmo, o manifesto do seu pontificado. “Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo!”, gritou ao mundo, no dia da inauguração do seu ministério.

A grande porta que o homem pode abrir, ou fechar, a Cristo, é apenas uma e se chama liberdade. Ela, porém, se abre segundo três modalidades diversas, ou segundo três tipos diversos de decisão que podemos considerar como outras portas: a fé, a esperança e a caridade. Estas são todas portas especiais: abrem-se por dentro e por fora ao mesmo tempo: com duas chaves, das quais uma está nas mãos do homem, a outra, nas de Deus. O homem não pode abri-las sem o concurso de Deus e Deus não quer abri-las sem o concurso do homem.

Cristo, origem e cumprimento da fé

Iniciemos, portanto, a nossa reflexão com a primeira das três portas: a fé. Deus – lê-se nos Atos dos Apóstolos – “havia aberto a porta da fé aos gentios” (At 14,27). Deus abre a porta da fé ao dar a possibilidade de crer enviando quem prega a boa nova; o homem abre a porta da fé acolhendo esta possibilidade.

Com a vinda de Cristo, constata-se, a propósito da fé, um salto de qualidade. Não na natureza dela, mas em seu conteúdo. Já não se trata mais de uma fé genérica em Deus, mas da fé em Cristo nascido, morto e ressuscitado por nós. A Carta aos Hebreus faz um longo elenco de crentes: “Pela fé, Abel... Pela fé, Abraão... Pela fé, Isaac... Pela fé, Jacó... Pela fé, Moisés...” Mas conclui dizendo: “Todos eles, se bem que pela fé tenham recebido um bom testemunho, não alcançaram a realização da promessa” (Hb 11,39). O que faltava? Faltava Jesus, isto é, aquele que – afirma a mesma Carta – “vai à frente da nossa fé e a leva à perfeição” (Hb 12,2).

A fé cristã, portanto, não consiste apenas em crer em Deus; consiste em crer também naquele que Deus enviou. Quando, antes de realizar um milagre, Jesus pergunta: “Tu crês?” e, após tê-lo realizado, afirma: “A tua fé te salvou”, não se refere a uma fé genérica em Deus (esta era presumida em todo israelita); refere-se à fé nele, no poder divino a ele concedido.

Esta, assim, é a fé que justifica o ímpio, a fé que faz renascer para a vida nova. Ela se coloca ao término de um processo do qual São Paulo, no capítulo 10 da Carta aos Romanos, traça as várias fases, quase visivelmente, desenhando-as no mapa do corpo humano. Tudo começa, diz ele, pelos ouvidos, a partir do ouvir o anúncio do Evangelho: “A fé vem da escuta”, fides ex auditu. Dos ouvidos, o movimento passa ao coração, onde se toma a decisão fundamental: corde creditur, “com o coração se crê”. Do coração, o movimento se volta à boca: “com a boca se faz a profissão de fé”: ore fit confessio.

O processo não termina aqui, mas – dos ouvidos, do coração e da boca – ele passa para as mãos. Sim, porque “a fé age pelo amor”, diz o Apóstolo (Gl 5,6). São Tiago pode se tranquilizar. Há espaço também para as “obras”: porém, não antes, mas depois (logicamente, se não cronologicamente) da fé. “Não se chega à fé – afirma São Gregório Magno – partindo-se das virtudes, mas às virtudes partindo-se da fé”[2].

Surge, neste ponto, uma pergunta de grande atualidade. Se a fé que salva é a fé em Cristo, o que pensar de todos aqueles que não têm nenhuma possibilidade de crer nele? Vivemos em uma sociedade, também religiosamente, pluralista. A nossas teologias – Oriental e Ocidental, Católica e Protestante, do mesmo modo – desenvolveram-se em um mundo onde existia, na prática, apenas o cristianismo. Conhecia-se, certamente, a existência de outras religiões, mas elas eram consideradas falsas em princípio, ou não eram consideradas de fato. À parte o diverso modo de entender a Igreja, todos os cristãos compartilhavam o axioma tradicional: “Fora da Igreja não há salvação”: Extra Ecclesiam nulla salus.

Hoje não é mais assim. Há algum tempo, está em curso um diálogo entre as religiões, baseado no respeito recíproco e no reconhecimento dos valores presentes em cada uma delas. Na Igreja Católica, o ponto de partida foi a declaração “Nostra aetate” do Concílio Vaticano II, mas uma orientação análoga é compartilhada por todas as Igrejas históricas cristãs. Com este reconhecimento, foi-se afirmando a convicção de que também pessoas fora da Igreja podem ser salvas.

É possível, nesta nova perspectiva, manter o papel até agora atribuído à fé “explícita” em Cristo? O antigo axioma: “fora da Igreja não há salvação” não terminaria por sobreviver, neste caso, no axioma: “fora da fé não há salvação”? Em alguns ambientes cristãos, esta última é, de fato, a doutrina dominante, e é ela que motiva o empenho missionário. Deste modo, contudo, a salvação passa a ser limitada, em princípio, a uma exígua minoria de pessoas.

Isso não só não pode nos deixar tranquilos, mas primeiramente prejudica Cristo, subtraindo-lhe grande parte da humanidade. Não se pode crer que Jesus é Deus, e depois limitar a sua relevância de fato a apenas um setor restrito dela. Jesus é “o Salvador do mundo” (Jo 4,42); o Pai enviou o seu Filho “para que o mundo seja salvo por meio dele” (Jo 3,17): o mundo, não alguns poucos no mundo!

Busquemos uma resposta na Escritura. Ela afirma que quem não reconheceu Cristo, mas age em base à própria consciência (Rm 2,14-15) e faz o bem ao próximo (Mt 25,31ss) é aceito por Deus. Nos Atos dos Apóstolos, escutamos, da boca de Pedro, esta solene declaração: “De fato, estou compreendendo que Deus não faz distinção de pessoas. Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença” (At 10,34-35).

Também os adeptos de outras religiões creem, em geral, que “Deus existe e recompensa os que o buscam” (Hb 11,6); realizam, por isso, o que a Escritura considera o dado fundamental e comum de toda fé. Isto vale, naturalmente, de maneira toda especial, para os irmãos Hebreus, que creem no mesmo Deus de Abraão, Isaac e Jacó, no qual cremos nós, cristãos.

O motivo principal do nosso otimismo não se baseia, contudo, no bem que os adeptos de outras religiões estejam em condição de fazer, mas na “multiforme graça de Deus” (1Pd 4,10). Às vezes, sinto a necessidade de oferecer o sacrifício da Missa justamente em nome de todos aqueles que se salvaram pelos méritos de Cristo, mas não o sabem e não podem agradecê-lo. A liturgia também nos exorta a fazê-lo. Na Oração Eucarística IV, à oração pelo Papa, pelo Bispo e pelos fiéis é acrescentada uma oração "por todos os que vos buscam com coração sincero".

Deus tem muito mais modos de salvar do que podemos pensar. Ele instituiu “canais” da sua graça, mas não se vinculou a eles. Um destes meios “extraordinários” de salvação é o sofrimento. Depois que Cristo o assumiu sobre si e o redimiu, também ele é, à sua maneira, um sacramento universal de salvação. Aquele que mergulhou nas águas do Jordão, santificando-as para todo batismo, também mergulhou nas águas da tribulação e da morte, fazendo delas um potencial instrumento de salvação. Misteriosamente, todo sofrimento – não apenas o dos fiéis – completa, de algum modo, “o que falta à paixão de Cristo” (Cl 1,24). A Igreja celebra a festa dos Santos Inocentes, ainda que nem mesmo eles sabiam que sofriam por Cristo!

Nós cremos que todos aqueles que se salvam, salvam-se pelos méritos de Cristo: “Em nenhum outro há salvação, pois não existe debaixo do céu outro nome, dado à humanidade, pelo qual devamos ser salvos” (At 4,12). Uma coisa, contudo, é afirmar a necessidade universal de Cristo para a salvação e outra coisa, afirmar a necessidade universal da fé em Cristo para a salvação.

Supérfluo, então, continuar a proclamar o Evangelho a toda criatura? Pelo contrário! É o motivo que deve mudar, não o fato. Devemos continuar a anunciar Cristo; não tanto, porém, por um motivo negativo – porque, do contrário, o mundo será condenado –, quanto por um motivo positivo: pelo dom infinito que Jesus representa para cada ser humano. O diálogo inter-religioso não se opõe à evangelização, mas determina seu estilo. Tal diálogo – escreveu São João Paulo II na Redemptoris missio – “faz parte da missão evangelizadora da Igreja”.

O mandato de Cristo: “Ide pelo mundo inteiro e proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16,15) e “Fazei discípulos todos os povos” (Mt 28,19) conserva a sua perene validade, mas deve ser compreendido em seu contexto histórico. São palavras para serem referidas no momento em que foram escritas, quando “todo o mundo” e “todos os povos” eram um modo para dizer que a mensagem de Jesus não era destinada apenas a Israel, mas também a todo o resto do mundo. São sempre válidas para todos, mas, para quem já pertence a uma religião, é preciso respeito, paciência e amor. Já o tinha compreendido na prática Francisco de Assis. Ele projetava dois modos de ir entre “os Sarracenos e outros infiéis”. Escreve na Regra não bulada:

Mas os frades que vão, podem comportar-se espiritualmente entre eles de dois modos. Um modo é que não façam nem litígios nem contendas, mas estejam submetidos a toda criatura humana por Deus e confessem que são cristãos. Outro modo é que, quando virem que agrada ao Senhor, anunciem a palavra de Deus, para que creiam em Deus onipotente, Pai e Filho e Espírito Santo, criador de tudo, no Filho redentor e salvador[3].

O desafio da ciência

Com esta abertura de coração, voltemos agora a nos ocupar da nossa fé cristã. O grande desafio que ela deve encarar em nossa época não vem tanto da filosofia, como no passado, mas da ciência. É de alguns meses atrás uma notícia sensacional. Um telescópio lançado ao espaço em 25 de dezembro de 2021 e posicionado há um milhão e meio de quilômetros da Terra, em 12 de julho deste ano enviou imagens inéditas do universo que extasiaram o mundo científico.

“O novo telescópio – lia-se nos noticiários – escancarou uma nova janela sobre o cosmo, em condições de nos catapultar atrás no tempo, até pouco depois do Big Bang inicial do mundo. É a visão mais detalhada do universo primordial jamais obtida. Representa a primeira degustação de uma nova e revolucionária astronomia que nos desvelará o universo como jamais o tínhamos visto”.

Seríamos tolos e ingratos se não participássemos do justo orgulho da humanidade por esta, como também por qualquer outra descoberta científica. Se a fé – além do que da escuta – nasce, como foi dito, do estupor, estas descobertas científicas não deveriam diminuir a possibilidade de crer, mas aumentá-la. Se vivesse hoje, o salmista cantaria com maior impulso: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de suas mãos” (Sl 19,2) e Francesco de Assis: “Louvado sejas, meus Senhor, com todas as tuas criaturas”.

Deus quis nos dar um sinal tangível da sua infinita grandeza com a imensidão do universo e um sinal da sua “inalcançabilidade” com a menor partícula de matéria que, uma vez alcançada – assegura a física –, mantém a sua “indeterminação”. O cosmo não se fez sozinho. É a qualidade do ser, não a quantidade que decide; e a qualidade da criação é ser... criada! Bilhões de galáxias, distantes bilhões de bilhões de anos-luz, não mudam esta sua qualidade.

Fazemos estas reflexões sobre fé e ciência não para convencer os cientistas não crentes (nenhum deles está aqui para escutar ou lerá estas palavras), mas para nos confirmar a nós, crentes na fé, e não nos deixarmos perturbar pelo clamor das vozes contrárias. É o mesmo objetivo pelo qual São Lucas afirma ao “caríssimo Teófilo” ter escrito o seu Evangelho: “para que conheças – diz ele – a solidez dos ensinamentos que recebeste” (Lc 1,4).

Diante do desdobrar-se das dimensões ilimitadas do universo diante de nossos olhos, o maior ato de fé para nós, cristãos, não é crer que tudo isso foi criado por Deus, mas crer que “tudo foi criado por meio de Cristo para ele” (Cl 1,16), que “sem ele nada foi feito de tudo o que foi feito” (Jo 1,3). O cristão tem uma prova sobre Deus bem mais convincente daquela dada pelo cosmo: a pessoa e a vida de Jesus Cristo.

Os crentes não são avestruzes. Não escondemos a cabeça no solo para não ver. Compartilhamos com cada pessoa o desconcerto diante de tantos mistérios e contradições do universo: da evolução natural, da história, da própria Bíblia... Contudo, estamos em condições de superar o desconcerto com uma certeza mais forte do que todas as incertezas: a credibilidade da pessoa de Cristo, da sua vida e da sua palavra. A certeza plena e alegre não se tem antes, mas depois de ter acreditado.

O justo, na sua fidelidade, viverá

A fé é o único critério capaz de fazer como que nos relacionemos de modo justo, não apenas com a ciência, mas também com a história. Ao falar da fé que justifica, São Paulo cita o famoso oráculo de Habacuc: “O justo, na sua fidelidade, viverá” (Hab 2,4). O que Deus quer dizer com aquela palavra profética, a partir do momento que é Deus em pessoa que a pronuncia?

A mensagem se abre com uma lamentação do profeta, pela derrota da justiça e porque Deus parece assistir impassível do alto dos céus a violência e a opressão. Deus responde que tudo isso está prestes a acabar porque chegará logo um novo flagelo – os Caldeus – que varrerá tudo e todos. O profeta se rebela contra esta solução. É esta a resposta de Deus? Uma opressão que substitui a outra?

Mas justamente aqui Deus esperava o profeta. Há uma solenidade insólita no modo com que o oráculo divino é introduzido: “Escreve uma visão e grava-a sobre tábuas... Se demora, espera-a... Eis que sucumbe quem não é reto, mas o justo, na sua fidelidade, viverá” (Hab 2,2-4). Ao profeta, é pedido o salto da fé. Deus não desvenda o enigma da história, mas pede que confie nele e na sua justiça, apesar de tudo. A solução não está na cessação da prova, mas no aumento da fé.

A história é uma contínua luta entre bem e mal, ímpios que triunfam e justos que sofrem. A vitória estável do bem sobre o mal não deve ser buscada na própria história, mas além dela. Deixemos para trás toda forma de milenarismo. Contudo, Deus é de tal forma soberano e está no controle dos eventos, que faz servir aos seus planos misteriosos até mesmo o agitar-se dos ímpios. É verdade: Deus escrive certo por linhas tortas! As situações podem escapar das mãos dos homens, mas não das de Deus.

A mensagem de Habacuc é de uma singular atualidade. A humanidade viveu nos últimos anos do século passado a libertação do poder opressor dos sistemas totalitários comunistas. Mas não tivemos o tempo de dar um respiro de alívio, que outras injustiças e violências surgiram no mundo. Houve quem, ao final da “guerra fria”, tivesse ingenuamente acreditado que o triunfo da democracia teria, portanto, encerrado definitivamente o ciclo das grandes convulsões e que a história teria prosseguido o seu curso sem maiores agitações. Até sema mais “história”. Uma tal tese foi, bem cedo, piedosamente desmentida pelos eventos, com o surgimento de outras ditaduras e o deflagrar-se de outras guerras, a começar pela “do Golfo”, até a desafortunada deste ano na Ucrânia.

Nesta situação, também para nós se apresenta a acalorada pergunta do profeta: “Até quando, Senhor? Tu, de olhos tão puros, que não pode ver o mal! Por que tanta violência, tantos corpos humanos esqueléticos pela fome, tanta crueldade no mundo, sem que intervenhas?” A resposta de Deus ainda é a mesma: sucumbe ao pessimismo e se escandaliza quem não tem o coração reto com Deus, enquanto o justo, na sua fidelidade, viverá, encontrará a resposta na sua fé. Entenderá o que Jesus queria dizer quando, diante de Pilatos, disse: “O meu reino não é deste mundo” (Jo 18,36).

Inculquemos isso, porém, e recordemo-lo, conforme a oportunidade, ao mundo: Deus é justo e santo; não permitirá que o mal tenha a última palavra e os malfeitores se valham disso. Haverá um juízo na conclusão da história, “vai um livro ser trazido, no qual tudo está contido, onde o mundo está julgado”: Liber scriptus proferetur – in quo totum continetur – unde mundus judicetur”[4].

Um primeiro juízo, no mais – imperfeito, mas sob os olhos de todos, crentes e não crentes – já está em ato agora, na história. Os benfeitores da humanidade que trabalharam pelo progresso do seu país e pela paz no mundo são recordados com honra e bênção de geração em geração; o nome dos tiranos e dos opressores continua pelos séculos a ser acompanhado de desprezo e reprovação. Jesus inverteu para sempre os papéis. Vencedor porque vítima: assim o define Santo Agostinho: Victor quia victima. À luz da eternidade - e também da história - não são os verdugos os verdadeiros vencedores, mas as suas vítimas.

O que a Igreja pode fazer, para não assistir passivamente ao desdobrar-se da história, é colocar-se contra a opressão e a prepotência, colocar-se sempre, “oportuna e inoportunamente”, do lado dos pobres, dos fracos, das vítimas, daqueles que carregam o peso maior de todo infortúnio e de toda guerra.

O que pode também fazer é remover um dos fatores que sempre tem fomentado os conflitos, isto é, a rivalidade entre as religiões, as famigeradas “guerras de religião”. Do entendimento e da colaboração leal entre as grandes religiões, pode vir um impulso moral que imprima na história aquele novo curso que, em vão, espera-se dos poderes políticos. Neste sentido, deve ser vista a utilidade de iniciativas como aquelas, iniciadas por São João Paulo II e aceleradas hoje pelo atual Sumo Pontífice, para um diálogo construtivo entre as religiões.

A fé é arma da Igreja. Também a Igreja, como o justo de Habacuc, “na sua fidelidade, viverá”. Roma deixou, há tempos, de ser caput mundi, mas deve permanecer caput fidei, capital da fé. Não só da reta fé, isto é, da ortodoxia, mas também da intensidade e da radicalidade do crer. O que os fiéis captam imedia­tamente em um sacerdote e em um pastor é se “crê”, se crê no que diz e no que celebra. Hoje, faz-se muito uso da transmissão sem fio (WiFi, diz-se em inglês). Também a fé se transmite de preferência assim: sem fio, sem muitas palavras e raciocínios, mas por uma corrente de graça que se estabelece entre dois espíritos.

O maior ato de fé que a Igreja pode dar – após ter rezado e feito o possível para evitar ou fazer cessar os conflitos – é voltar-se a Deus com um ato de total confiança e sereno abandono, repetindo com o Apóstolo: “Sei em quem acreditei!”: Scio cui credidi (2Tim 1,12). Deus jamais retrocede para deixar cair no vazio quem se lança em seus braços.

Vamos ao encontro de Cristo que vem, com um ato de fé, que é também uma promessa de Deus e, portanto, uma profecia: o mundo está nas mãos de Deus e, quando, abusando da sua liberdade, o homem terá chegado ao fundo, ele intervirá para salvá-lo. Sim, intervirá para salvá-lo! Para isso, de fato, veio ao mundo, há dois mil e vinte e dois anos.

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Tradução de fr. Ricardo Farias, ofmcap

[1] Cf. Ambrósio, Comentário sobre o Salmo 118, XII,14.

[2] Cf. Gregório Magno, Homilias sobre Ezequiel, II,7 (PL 76,1018).

[3] Regra não bulada, cap. XVI.

[4] Sequência Dies irae.

Segunda Pregação do Advento 2022 com Fr. Raniero Cantalamessa

O texto integral da segunda pregação do Advento 2022 para a Cúria Romana do Frei Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap , na Sala Paulo VI na manhã desta sexta-feira (09/12)



A PORTA DA ESPERANÇA

Segunda Pregação do Advento de 2022

Vivendo a esperança

“Ó portas, levantai vossos frontões! Elevai-vos bem mais alto, antigas portas, a fim de que o Rei da glória possa entrar” (Sl 24,7). Tomamos este versículo do salmo como fio condutor das meditações do Advento, entendendo por portas a serem abertas as das virtudes teologais: fé, esperança e caridade. O templo de Jerusalém – lemos nos Atos dos Apóstolos – tinha uma porta chamada “Porta Formosa” (At 3,2). O templo de Deus, que é o nosso coração, também tem uma porta “formosa”, e é a porta da esperança. É esta a porta que hoje queremos buscar abrir a Cristo que vem.

Qual é o objeto próprio da “esperança”, que em cada Missa proclamamos estar “vivendo”? Para nos dar conta da novidade absoluta trazida por Cristo neste campo, é preciso situar a revelação evangélica no pano de fundo das crenças antigas sobre o além.

Sobre este ponto, também o Antigo Testamento não tinha uma resposta para dar. Sabe-se que, apenas por volta do seu fim, tem-se alguma afirmação explícita sobre uma vida após a morte. Antes, a crença de Israel não diferia daquela dos povos vizinhos, especialmente daqueles da Mesopotâmia. A morte põe fim à vida para sempre; todos terminam, bons e maus, em uma espécie de lúgubre “fossa comum” que, em outros lugares, chama-se Arallu e, na Bíblia, o Sheol. Não diversa é a crença dominante no mondo greco-romano contemporâneo do Novo Testamento. Ele chama aquele triste lugar de sombras Infernos, ou Hades.

A grande coisa que distingue Israel de todos os demais povos é que ele continuou, apesar de tudo, a crer na bondade e no amor do seu Deus. Não atribuiu a morte, como faziam os babilônios, à inveja da divindade que reserva somente para si a imortalidade, mas sim ao pecado do homem (Gn 3), ou simplesmente à própria natureza mortal. Em certos momentos, o homem bíblico não calou, é verdade, o próprio desconcerto diante de uma sorte que parecia não fazer qualquer distinção entre justos e pecadores. Jamais, contudo, Israel chegou à rebelião. Em alguns orantes bíblicos, ele parece ser propenso a desejar e entrever a possibilidade de uma relação com Deus além da morte: um ser “resgatado da mão da morte” (Sl 49,16), “estar com Deus sempre” (Sl 73,23) e “delícia eterna e alegria ao seu lado” (Sl 16,11).

Quando, pelo final do Antigo Testamento, esta espera, amadurecida no subsolo da alma bíblica, finalmente virá à luz, não se exprime, à maneira dos filósofos gregos, como sobrevivência da alma imortal que, liberada do corpo, volta ao mundo celeste da qual provém. Em harmonia com a concepção bíblica do homem, como unidade inseparável de alma e corpo, a sobrevivência consiste na ressurreição – corpo e alma – da morte (Dn 12,2-3; 2Mc 7,9).

Jesus trouxe à sua luz, de imediato, esta certeza e – o que mais conta –, após tê-la anunciada em parábolas e sentenças (como aquela em resposta aos Saduceus sobre a mulher de sete maridos: Mt 22,30) –, deu a prova irrefutável disso, ele próprio ressurgindo da morte. Depois dele, para o crente, a morte não é mais uma aterrissagem, mas uma decolagem!

O mais belo dom e a mais preciosa herança que a Rainha da Inglaterra Elizabeth II deixou à sua nação e ao mundo, após 70 anos de reinado, foi a sua esperança cristã na ressurreição dos mortos. No rito fúnebre, assistido ao vivo por quase todos os poderosos da Terra e, pela televisão, por centenas de milhões de pessoas, foram proclamadas, por sua vontade expressa, na primeira leitura, as seguintes palavras de Paulo:

A morte foi tragada pela vitória; onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Ora, o aguilhão da morte é o pecado e a força do pecado é a Lei. Graças sejam dadas a Deus que nos dá a vitória por Nosso Senhor, Jesus Cristo (1Cor 15,54-57).

E, no Evangelho, sempre por sua vontade, as palavras de Jesus:

Na casa de meu Pai há muitas moradas... E depois que eu tiver ido preparar-vos um lugar, voltarei e vos levarei comigo, a fim de que, onde eu estiver, estejais vós também (Jo 14,2-3).

II Pregação do Advento do Frei Raniero Cantalamessa na Sala Paulo VI

A esperança, virtude ativa

Justamente porque estamos ainda imersos no tempo e no espaço, faltam-nos as categorias necessárias para representarmos em que consistiria esta “vida eterna” com Deus. É como tentar explicar o que é a luz a alguém que nasceu cego. São Paulo se limita a dizer:

Semeado na desonra, ressuscita na glória,

semeado na fraqueza, ressuscita no poder;

semeia-se um corpo animal,

ressuscita um corpo espiritual (1Cor 15,43-44).

A alguns místicos, foi dado experimentar, já nesta vida, algumas gotas do oceano infinito de alegria que Deus preparou para os seus; mas todos, unanimemente, afirmam que não se pode dizer nada sobre isso com palavras humanas. O primeiro deles é ele mesmo, o Apóstolo Paulo. Ele confia aos Coríntios ter sido arrebatado, quatorze anos antes, ao “terceiro céu”, no paraíso, e ter ouvido “palavras inefáveis, que homem nenhum é capaz de falar” (2Cor 12,2-4). A recordação que essa experiência deixou nele é perceptível no que escreve em outra ocasião:

O que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, nem entrou no coração do ser humano, é o que Deus preparou para os que o amam (1Cor 2,9).

Mas deixemos de lado o que será no além (sobre o qual podemos dizer tão pouco) e voltemos ao hoje da nossa vida. Refletir sobre a esperança cristã significa refletir sobre o sentido último da nossa existência. Uma coisa é comum a todos: o desejo de viver e viver “bem”. Porém, assim que se busca entender o que se compreende por “bem”, logo se visualizam duas classes de pessoas: aquelas que pensam apenas no bem material e pessoal e aquelas que pensam também no bem moral e de todos, o chamado “bem comum”.

Em relação aos primeiros, o mundo não mudou muito desde o tempo de Isaías e de São Paulo. Ambos referem o ditado que corria ao seu tempo: “Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos” (Is 22,13; 1Cor 15,32). Mais interessante é buscar entender aqueles que se propõem – ao menos como ideal – a “viver bem” não apenas material e individualmente, mas também moralmente e junto com os outros. Existem sites na internet em que se entrevistam pessoas idosas sobre como, chegando ao crepúsculo, avaliam a vida que viveram. São, em geral, homens e mulheres que viveram uma vida rica e digna, a serviço da família, da cultura e da sociedade, mas sem qualquer referência religiosa. É patética a tentativa de fazer acreditar que são felizes por terem vivido assim. A tristeza de terem vivido – e em breve não viver mais! –, escondida pelas palavras, gritava pelos olhos.

Santo Agostinho expressou o cerne do problema: “Para que serve viver bem, se não se pode viver sempre?”[1]. Antes dele, Jesus dissera: “Que adianta a alguém ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou a arruinar-se a si mesmo?” (Lc 9,25). Eis onde se insere – e em que difere – a resposta da esperança teologal. Ela nos assegura que Deus nos criou para a vida, não para a morte; que Jesus veio para nos revelar a vida eterna e nos dar a garantia dela com a sua ressurreição.

Uma coisa deve ser enfatizada, para não cair em um perigoso equívoco. Viver “sempre” não se opõe ao viver “bem”. A esperança da vida eterna é o que a torna bela, ou ao menos aceitável, também a vida presente. Todos, nesta vida, temos a nossa parte de cruz, crentes ou não. Mas uma coisa é sofrer sem saber para que fim, e outra, sofrer sabendo que “os sofrimentos do tempo presente não têm proporção com a glória que há de ser revelada em nós” (Rm 8,18).

Dar a razão da esperança

A esperança teologal tem um papel importante a desempenhar em relação à evangelização. Um dos fatores determinantes da rápida difusão da fé, nos primórdios do cristianismo, foi o anúncio cristão de uma vida após a morte infinitamente mais plena e mais alegre daquela terrena.

O imperador romano Adriano construíra para si, em várias partes do mundo, mansões espetaculares e preparara para si como mausoléu aquele que agora é o Castelo de Santo Ângelo, perto daqui. Próximo da morte, escreveu uma espécie de epitáfio para a sua tumba. Falando à sua alma, nele a exortava a dar um último olhar às belezas e aos deleites deste mundo, pois –dizia –, “estás prestes a descer a lugares incolores, árduos e despojados”[2]. O Hades! Pode-se imaginar o choque espiritual que devia provocar, em uma atmosfera como esta, o anúncio de uma vida infinitamente mais plena e mais luminosa daquela que se deixava com a morte. Explica-se assim porque a ideia e os símbolos da vida eterna são tão frequentes nas sepulturas cristãs das catacumbas.

Na Primeira Carta de São Pedro, a atividade da Igreja ao exterior, isto é, a propagação da mensagem, é apresentada como um “dar a razão da esperança”: “Santificai o Senhor Jesus Cristo em vossos corações e estai sempre prontos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que a pedir”. (1Pd 3,15-16). Lendo as narrativas sucessivas à Páscoa, tem-se a sensação de que a Igreja nasce de uma palavra de ordem de “esperança viva” (1Pt 1,3) e, com esta esperança, moveram-se à conquista do mundo.

Também hoje temos necessidade de uma regeneração da esperança, se quisermos empreender uma nova evangelização. Não se faz nada sem esperança. Os homens vão aonde se respira ar de esperança e fogem de onde não percebem a presença dela. A esperança é aquela que dá a coragem aos jovens para formar uma família ou seguir uma vocação religiosa e sacerdotal, é aquela que os mantém longe da droga e de semelhantes rendições ao desespero.

A Carta aos Hebreus compara a esperança a uma âncora: “É para nós como uma âncora da alma, segura e firme” (Hb 6,18-19). Segura e firme, porque lançada à eternidade. Mas temos também uma outra imagem da esperança, em certo sentido, oposta: a vela. Se a âncora é o que dá ao barco a segurança e a mantém firme em meio às ondulações do mar, a vela é, ao invés, o que a faz caminhar e avançar no mar. Ambas estas coisas faz a esperança com o barco da Igreja.

Quanto ao passado, hoje estamos em uma situação de vantagem em relação à esperança. Não devemos mais passar o nosso tempo em defender a esperança cristã dos ataques externos; podemos, então, fazer a coisa mais útil e frutuosa, que é aquela de proclamá-la, oferecê-la e irradiá-la no mundo. Fazer da esperança um discurso não tanto apologético, porém mais kerigmático.

Vejamos ao que aconteceu a propósito da esperança cristã há mais de um século nesta parte. Antes, houve o ataque frontal contra ela da parte de homens como Feuerbach, Marx, Nietzsche. A esperança cristã foi, em muitos casos, o objetivo direto da crítica deles. Vida eterna, além, paraíso: todas estas coisas eram vistas como a projeção ilusória dos desejos e necessidades insatisfeitos do homem neste mundo, como um “desperdiçar no céu os tesouros destinados à terra”. Os cristãos buscavam defender o conteúdo da esperança cristã, frequentemente, com um maldisfarçado desconforto. A esperança cristã estava “em minoria”. Raramente se falava e se pregava sobre a vida eterna.

Após ter demolido a esperança cristã, a cultura ateia marxista não demorou a se dar conta de que não podiam deixar as pessoas humanas sem esperança. E eis que inventou o “Princípio esperança”[3]. Com ele, a cultura marxista não pretendia ter demolido a esperança cristã, mas, pior, ter ido além dela e ser a sua legítima herdeira. Para o autor do “Princípio esperança” (princípio, note-se bem, não virtude), é certo que a esperança é vital para o homem. Ela é real e tem uma saída, que é “a revelação do homem oculto”, ou seja, de possibilidades ainda latentes da humanidade. A manifestação do Filho do homem, Cristo, é substituída pela manifestação do homem oculto, a parusia é substituída pela utopia.

Por cerca de duas décadas, lembro-me, não se falava de outra coisa nas universidades e, a muitos cristãos, não parecia real que houve alguém do outro lado que aceitasse assumir seriamente a esperança e instaurar um diálogo. Ainda mais porque a inversão era tão sutil e a linguagem, frequentemente semelhante. A pátria celeste se tornava a “pátria da identidade”; não o lugar onde o homem finalmente vê Deus face a face, mas onde vê o verdadeiro homem, no qual se tem então a identidade perfeita entre o que pode ser e o que é. A chamada “teologia da esperança” nasceu em resposta a este desafio, por vezes aceitando, infelizmente, a sua configuração. O que menos se percebe em todos estes escritos é justamente o que Pedro chama de “esperança viva” (1Pd 1,3), o tremor da esperança. Não vida, mas ideologia.

Agora, dizia eu, a situação mudou em parte. A tarefa que temos à frente, em relação à esperança, não é mais a de defendê-la e de justificá-la filosófica e teologicamente, mas de anunciá-la, de mostrá-la e de doá-la a um mundo que perdeu o sentido da esperança e afunda sempre mais em um pessimismo e niilismo, que é o verdadeiro “buraco negro” do universo.

Gaudium et spes

Um modo de tornar ativa e contagiante a esperança é aquele formulado por São Paulo quando diz que “a caridade tudo espera” (1Cor 13,7). Isto vale não apenas para a pessoa individualmente, mas também para o conjunto da Igreja. A Igreja tudo espera, tudo crê, tudo suporta. Ela não pode se limitar em denunciar as possibilidades de mal que há no mundo e na sociedade. Não se deve certamente negligenciar o temor do castigo e do inferno e deixar de alertar as pessoas sobre as possibilidades de mal que uma ação ou uma situação comporta, como as feridas provocadas ao ambiente. A experiência, porém, demonstra que se consegue mais por via positiva, insistindo sobre as possibilidades de bem; em termos evangélicos, pregando a misericórdia. Talvez jamais o mundo moderno tenha se mostrado tão bem disposto para com a Igreja e tão interessado em sua mensagem, como nos anos do Concílio. E o motivo principal é que o Concílio dava esperança.

Mas, deste modo, não nos expomos – pergunta-se – a sermos desiludidos e parecermos ingênuos? Esta é a grande tentação contra a esperança, sugerida pela prudência humana, ou pelo medo de sermos desmentidos pelos fatos, e é o que está acontecendo, em parte, também em relação ao Concílio. Como se o ter ousado falar de “alegria e esperança” (gaudium et spes) tivesse sido uma ingenuidade, da qual devamos até mesmo nos envergonhar um pouco. É o que muitos pensaram do Papa João quando do seu anúncio do Concílio.

Devemos retomar a palavra de ordem de esperança iniciada pelo Concílio. A eternidade é uma medida muito ampla; ela nos permite esperar de todos, não abandonar ninguém sem esperança. O Apóstolo dava aos cristãos de Roma o mandato para abundar na esperança. “Que o Deus da esperança – escrevia – vos encha de toda alegria e paz em vossa fé. Assim, vossa esperança abundará, pelo poder do Espírito Santo (Rm 15,13).

A Igreja não pode oferecer ao mundo melhor dom do que lhe dar esperança; não esperanças humanas, efêmeras, econômicas ou políticas, sobre as quais ela não tem uma competência específica, mas esperança pura e simples, aquela que, mesmo sem saber, tem por horizonte a eternidade e por fiador Jesus Cristo e a sua ressurreição. Será então esta esperança teologal a servir de estímulo a todas as demais esperanças humanas legítimas. Quem viu um médico visitar um doente grave, sabe que o maior alívio que pode lhe proporcionar, melhor do que todos os remédios, é dizer-lhe: “O médico espera; tem boas esperanças para você!”.

A esperança, assim entendida, transforma tudo o que toca. O seu efeito é maravilhosamente descrito na seguinte passagem de Isaías:

Até os adolescentes se afadigam e cansam,

e mesmo os jovens às vezes tropeçam!

Aqueles, porém, que esperam no Senhor,

renovam suas forças,

criam asas como de águia,

correm e não se afadigam,

caminham e não se cansam (Is 40,30-31).

Deus não promete tirar os motivos do cansaço e da exaustão, mas dá esperança. A situação em si permanece a que era, mas a esperança dá a força para se elevar acima dela. No Apocalipse, lê-se que “quando viu que tinha sido lançado à terra, o dragão começou a perseguir a mulher que tinha dado à luz o menino. Mas a mulher recebeu as duas asas da grande águia e voou para o deserto, para o lugar onde é alimentada” (Ap 12,13-14). A imagem das asas da águia se inspira claramente no texto de Isaías. Por isso, ocorre-nos dizer que à Igreja inteira foram dadas as grandes asas da esperança, para que com elas possa, toda vez, escapar dos ataques do mal, superar de imediato as dificuldades.

“Levanta-te e anda!”

A porta do templo, chamada “Porta Formosa”, é conhecida pelo milagre que ocorreu junto dela. Um coxo era colocado diante dela para pedir esmola. Um dia, passaram aí Pedro e João e sabemos o que aconteceu. O coxo, curado, pôs-se em pé e, finalmente, quem sabe depois de quantos anos que lá permanecia abandonado, atravessou também ele aquela porta e entrou no templo, lê-se, “saltando e louvando a Deus” (At 3,1-9).

Algo do tipo poderia ocorrer também a nós em relação à esperança. Também nós nos encontramos, frequentemente, espiritualmente, na posição do coxo no limiar do templo: inertes, apáticos, como se paralisados diante das dificuldades. Mas eis que a divina esperança nos passa ao lado, levada pela palavra de Deus, e diz também a nós, como Pedro ao coxo: “Levanta-te e anda!”. E nós nos colocamos em pé e finalmente entramos, no vivo da Igreja, prontos para assumir, de novo e alegremente, tarefas e responsabilidades. São os milagres cotidianos da esperança. Ela é realmente uma grande taumaturga, uma grande operadora de milagres; reergue milhares de coxos, milhares de vezes.

Além do que para a evangelização, a esperança é de auxílio em nosso caminho pessoal de santificação. Ela se torna, em quem a exerce, o princípio do progresso espiritual. Permite descobrir sempre novas “possibilidades de bem”, sempre algo que pode ser feito. Não deixa que nos acomodemos na apatia e na melancolia. Quando você se sente tentado a dizer a si mesmo: “Não há mais nada a fazer”, eis que a esperança aparece e lhe diz: “Reze!”. Você responde: “Mas eu rezei!”, e ela: “Reze ainda!”. E também caso a situação se tornasse dura ao extremo e tal que pareça não haver mais nada mesmo a fazer, eis que a esperança lhe indica ainda uma tarefa: suportar até o fim e não perder a paciência, unindo-se a Cristo na cruz. O Apóstolo, ouvimos, recomenda “abundar na esperança”, mas logo acrescenta como isso se torna possível: “pelo poder do Espírito Santo”. Não pelos nossos esforços.

O Natal pode ser a ocasião para uma mexida de esperança. O grande poeta moderno das virtudes teologais, Charles Péguy, escreveu que Fé, Esperança e Caridade são três irmãs, duas maiores e uma menor. Caminham pela estrada de mãos dadas: as duas maiores, Fé e Caridade, aos lados, e a menina Esperança, ao centro. Todos, ao vê-las, pensam que são as duas maiores que levam a pequenina no centro. Errado! É ela quem leva tudo”[4]. Pois se vem a faltar a esperança, tudo para.

Se quisermos dar um nome próprio a esta criança, não podemos chamá-la senão de Maria, aquela que aqui – diz outro grande poeta das virtudes teologais, Dante Alighieri –, “para a humanidade”, é “viva fonte de esperança”[5].

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Tradução de Fr. Ricardo Farias

[1] Cf. Agostinho, Comentário ao Evangelho de João, 45,2 (Quid prodest bene vivere si non datur semper vivere?).

[2] Citado em M. Yourcenar, Memórias de Adriano, tr. it. L. Storoni Mazzolani, Einaudi, Torino 1988.

[3] Cf. Ernst Bloch, Il principio speranza, 3 voll., Berlino 1954-1959.

[4] Cf. Ch. Péguy, Le porche de la deuxième vertu, Œuvres poétiques complètes, Gallimard, Paris 1975, pp. 534-539.

[5] Cf. Dante Alighieri, Paraíso XXXIII,12.


Terceira pregação do Advento do cardeal Raniero Cantalamessa

VATICAN NEWS


"Diz uma lenda que, entre os pastores que se dirigiram para encontrar o Menino na noite de Natal, havia um pastorzinho tão pobre, que não tinha nada para oferecer à Mãe, e ficava de lado, envergonhado. Todos disputavam para entregar a Maria o próprio presente. A Mãe não conseguia pegar todos, tendo que segurar o Menino Jesus nos braços. Vendo-o ali ao lado o pastorzinho com as mãos vazias, toma o Menino e o coloca em seus braços. Não ter nada foi a sua sorte. Façamos com que seja também a nossa"

Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap


A PORTA DA CARIDADE

Terceira Pregação do Advento de 2022

Um Deus para amar ou um Deus que ama?

“Ó portas, levantai vossos frontões! Elevai-vos bem mais alto, antigas portas, a fim de que o Rei da glória possa entrar”. Em nosso intuito de abrir as portas a Cristo que vem, chegamos à porta mais interna do “castelo interior”, aquela da virtude teologal da caridade.

Mas o que significa abrir a Cristo a porta do amor? Significa, talvez, tomarmos nós a iniciativa de amar a Deus? Assim teriam respondido os filósofos pagãos, em base à concepção que tinham do amor de Deus. “Deus – dizia Aristóteles – move o mundo na medida em que é amado”[1]. Na medida em que é amado, note-se bem, não à medida em que ama! Esta visão filosófica foi completamente invertida no Novo Testamento:

Nisto está o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele que nos amou e enviou o seu Filho... Nós amamos porque ele nos amou primeiro (1Jo 4,10.19).

Henri de Lubac escreveu: “É preciso que o mundo saiba: a revelação do Amor revira tudo o que ele concebera sobre a divindade”[2]. Até hoje não terminamos (e jamais terminaremos) de tirar todas as consequências da revolução evangélica sobre Deus como amor. O Espírito Santo – ensina-nos Santo Irineu – rejuvenesce continuamente o tesouro da revelação, juntamente com o vaso que o contém, que é a tradição da Igreja. Com o seu auxílio, busquemos entender qual é, acerca da virtude teologal da caridade, a consequência a se descobrir e, sobretudo, a se viver.

Existem inúmeros tratados sobre o dever e sobre os graus do amor de Deus, em outras palavras, sobre o “Deus a se amar”, De diligendo Deo; não conheço tratados sobre Deus que ama! A Bíblia é, ela própria, um tratado sobre o Deus que ama; mas, apesar disso, quase sempre, quando se fala de “amor de Deus”, Deus é o objeto, não o sujeito da frase.

Agora, é bem verdade que amar a Deus com todas as forças é “o primeiro e maior mandamento”. Esta é, certamente, a primeira coisa na ordem dos mandamentos; mas a ordem dos mandamentos não é a primeira ordem, a que está no topo de tudo! Antes da ordem dos mandamentos, está a ordem da graça, isto é, do amor gratuito de Deus. O próprio mandamento se funda sobre o dom; o dever de amar a Deus se funda sobre o sermos amados por Deus: “Nós amamos porque ele nos amou primeiro”, recordou-nos há pouco o evangelista João. Esta é a novidade da fé cristã em relação a toda ética baseada no “dever”, ou no “imperativo categórico”. Jamais deveríamos perdê-lo de vista.

Nós cremos no amor de Deus

Abrir a Cristo a porta do amor significa, portanto, algo bem preciso: acolher o amor de Deus, crer no amor. “E nós conhecemos, e cremos no amor que Deus tem para conosco”, escreve João no mesmo contexto (1Jo 4,16). Natal é a manifestação – literalmente, a epifania – da bondade e do amor de Deus para o mundo: “Com efeito, a graça salvadora de Deus manifestou-se (epephane) a toda a humanidade”, escreve São Paulo. E ainda: “Se manifestou a bondade Deus, nosso Salvador, e o seu amor pela humanidade” (Tt 2,11;3,4).

A coisa mais importante a se fazer no Natal é receber com estupor o dom infinito do amor de Deus. Quando alguém recebe um presente, não é delicado apresentar imediatamente, com a outra mão, o próprio presente, talvez já preparado com antecedência. Dá-se, inevitavelmente, a impressão de querer imediatamente se desobrigar. Primeiro, é preciso honrar o presente que se recebe e o seu doador, com o estupor e a gratidão. Depois – quase se envergonhando e com pudor – pode-se apresentar o próprio presente, como se não fosse nada em relação ao que foi recebido (diante de Deus, o nosso presente é, de fato, menos que nada!).

O que devemos fazer, como primeira coisa no Natal, é crer no amor de Deus por nós. O ato de caridade tradicional, ao menos na recitação particular e pessoal, não deveria começar com as palavras: “Senhor Deus, amo-Te sobre todas as coisas”, mas “Senhor Deus, creio de todo o coração que Tu me amas”.

Parece algo fácil. Ao contrário, está entre as coisas mais difíceis no mundo. O homem é mais propenso a ser ativo do que passivo; a fazer, mais do que deixar que lhe façam. Inconscientemente, não queremos ser devedores, mas credores; queremos, sim, o amor de Deus, mas com prêmio, mais do que como dom. Assim, porém, realiza-se insensivelmente um deslocamento e uma inversão: em primeiro lugar, no topo de tudo, no lugar do dom, é colocado o dever; no lugar da graça, a lei; no lugar da fé, as obras.

“Cremos no amor!”: este é um grito para o qual é preciso reunir todas as forças e fazer-se violência. Eu chamo de “fé incrédula”: fé que não sabe se capacitar do que crê, mesmo que creia. Deus – o Eterno, o Ser, o Tudo – me ama e cuida de mim, pequeno nada perdido na imensidão do universo e da história! “O naufragar me é doce neste mar”, deveríamos exclamar com o poeta Leopardi[3].

É preciso que nos tornemos crianças para crer no amor. As crianças creem no amor, mas não em base a um raciocínio. Por instinto, por natureza. Nascem cheios de confiança no amor dos pais. Pedem aos pais as coisas de que necessitam, talvez mesmo batendo os pés, mas o pressuposto tácito não é que já ganharam; é que são filhos e um dia serão herdeiros de tudo. É sobretudo por este motivo que Jesus recomenda frequentemente para que nos tornemos como crianças para entrar no seu Reino.

Mas não é fácil nos tornarmos crianças. A experiência, as amarguras, as desilusões da vida nos tornam cautelosos, prudentes, às vezes, cínicos. Todos parecemos um pouco com Nicodemos. “Como pode alguém nascer – pensamos –, se já é velho?” (Jo 3,4). Como podemos renascer, voltar a nos entusiasmar, a nos maravilhar no Natal, como as crianças? Mas o que Jesus respondeu a Nicodemos? “Em verdade, em verdade, eu te digo: se alguém não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5).

Isto não é resultado de esforço e pretensão humanos, ou excitação do coração; é obra do Espírito Santo. Jesus não fala aqui apenas do batismo; pelo menos, não apenas do batismo de água. Trata-se de um renascimento e de um batismo “no Espírito”, ou “do alto” (Jo 3,3), que pode se renovar várias vezes no arco da vida. Foi isso que os apóstolos e os discípulos experimentaram em Pentecostes e que também nós deveríamos desejar conhecer, em certa medida, aquele “novo Pentecostes” que o Papa São João XXIII pediu a Deus para toda a Igreja ao anunciar o Concílio.

O essencial de Pentecostes está encerrado nestas palavras do versículo 4 do capítulo segundo dos Atos dos Apóstolos: “Todos ficaram repletos do Espírito Santo”. O que quer dizer esta breve frase que já ouvimos milhares de vezes? “Todos ficaram repletos do Espírito Santo”: certo: mas o que é o Espírito Santo? É o amor – diz a teologia – com que o Pai ama o Filho e com que o Filho ama o Pai. Mais livremente, dizemos: é a vida, a doçura, o fogo, a bem-aventurança que corre na Trindade, porque o amor é todas estas coisas juntas e em grau infinito.

Dizer, portanto, que “todos ficaram repletos do Espírito Santo” é como dizer que todos ficaram repletos do amor de Deus. Fizeram uma experiência arrebatadora de serem amados por Deus. Morrendo, Cristo destruíra o muro divisório do pecado e, agora, o amor de Deus podia finalmente ser derramado sobre os apóstolos e os discípulos, submergindo-os em um oceano de paz e felicidade. Ao dizer que “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5), São Paulo não faz outra coisa senão descrever – de forma sintética, ao invés de narrativa – o evento de Pentecostes, atualizado, para cada um, no batismo.

O amor de Deus tem um aspecto objetivo, que chamamos de graça santificante, ou caridade infundida, mas comporta também um elemento subjetivo, uma repercussão existencial, assim como é na própria natureza do amor. Não se tratou, como somos levados a pensar, de algo puramente objetivo, ou ontológico, do qual o interessado não tem qualquer conhecimento. O dom do “coração novo” não acontece sob anestesia total, como os transplantes normais de coração! Nós o vemos a partir da mudança improvisa que se realiza nele. Nada mais de temores, rivalidades, timidez; homens novos, prontos a se lançar pelas estradas do mundo e dar a vida por Cristo.

“O amor constrói”

O discurso sobre a virtude teologal do amor não se conclui, certamente, neste ponto. Seria um discurso incompleto, como uma prótase não seguida pela apódose. A prótase é: “Se Deus tanto nos amou...”; a apódose, ou a consequência, é: “também nós devemos amá-lo e nos amar entre nós”. Mas temos tantas ocasiões para falar sobre o exercício da caridade que, por uma vez, podemos deixar de lado o “dever” para nos ocupar apenas do “dom”. Limito-me apenas a algumas breves considerações sobre o efeito social e eclesial da virtude teologal da caridade.

Sobre ela, afirma-se que “constrói”: “o conhecimento enche de arrogância, mas o amor constrói” (1Cor 8,1). Constrói primeiramente o edifício de Deus, que é a Igreja. “Vivendo segundo a verdade, no amor, cresceremos sob todos os aspectos em relação a Cristo, que é a cabeça. É dele que o corpo recebe coesão e harmonia... e, assim, realiza o seu crescimento, construindo-se no amor” (Ef 4,15-16).

O amor é o que constitui a realidade invisível da Igreja, a societas sanctorum, ou comunhão dos santos, como a chama Agostinho. É a realidade do sacramento (a res sacramenti), o significado do sinal que é a Igreja visível. “O amor permanece”, afirma São Paolo (1Cor 13,13). É o único que permanece. Cessados as Escrituras, a fé, a esperança, os carismas, os ministérios e todo o resto, permanece o amor. Tudo desaparecerá, como quando se desmonta o andaime que serviu para construir um edifício e este aparece em todo o seu esplendor.

Por um certo tempo, na antiguidade, costumou-se designar com o simples termo de caridade, ágape, a realidade inteira da Igreja. Isto logo traz à mente o famoso ditado de Santo Inácio de Antioquia: “A Igreja de Roma é aquela que preside na caridade (ágape)”[4]. Esta frase é normalmente utilizada em função do primado de Roma e do Papa. Mas ela não afirma apenas o fato do primado (“preside”), mas também a sua natureza, ou o modo de exercê-lo (“na caridade”). É o que a Igreja de Roma tem feito em seus melhores momentos e que hoje certamente deseja fazer, tendo escolhido – também na nova Constituição Praedicate Evangelium – o diálogo fraterno, a sinodalidade e o serviço, como método de governo.

A caridade, contudo, não constrói apenas a sociedade espiritual que é a Igreja, mas também a sociedade civil. Na obra A cidade de Deus, Santo Agostinho explica que, na história, coexistem duas cidades: a cidade de Satanás, simbolizada pela Babilônia, e a cidade de Deus, simbolizada por Jerusalém. O que distingue as duas sociedades é o amor diverso com o qual se movem. A primeira tem por motivação o amor a si levado até o desprezo por Deus (amor sui usque ad contemptum Dei), a segunda tem por motivação o amor a Deus levado até desprezo de si (amor Dei usque ad contemptum sui)[5].

A oposição, neste caso, é entre o amor a Deus e o amor a si mesmo. Em outra obra, contudo, Santo Agostinho corrige em parte esta contraposição, ou ao menos a reequilibra. A verdadeira contraposição que caracteriza as duas cidades não é entre o amor a Deus e o amor a si. Estes dois amores, entendidos corretamente, podem – melhor, devem – existir juntos. Não, a verdadeira contraposição é aquela dentro do amor a si, e é a contradição entre o amor exclusivo por si – o amor privatus, como ele o chama –, e o amor pelo bem comum – o amor socialis [6]. É o amor privado – isto é, o egoísmo – que cria a cidade de Satanás, a Babilônia, e é o amor social que cria a cidade de Deus, onde reina a concórdia e a paz.

O sentimento social nasceu no solo irrigado pelo Evangelho, e é estranho que, em época moderna, tal conquista tenha sido usada como argumento para se jogar na face do cristianismo. Nos primeiros séculos e por toda a Idade Média, o meio por excelência, para agir no social e ir ao encontro dos pobres, era a esmola. Ela é um valor bíblico e conserva sempre a sua atualidade. Não pode mais, contudo, ser proposto como o modo ordinário de praticar o amor social, ou o amor pelo bem comum, pois não salvaguarda a dignidade do pobre e o mantém em seu estado de dependência.

Compete aos políticos e aos economistas empreender processos estruturais que reduzam o escandaloso abismo entre um reduzido número de megarricos e o infinito número dos deserdados da terra. O meio ordinário para os cristãos é criar as premissas no coração do homem para que isto aconteça. Para quem está empenhado no social, trata-se de promover a chamada “Doutrina Social da Igreja”. Para os empreendedores cristãos, por exemplo, é criar postos de trabalho, como reafirmou o Santo Padre, no encontro de Assis de setembro passado, aos jovens economistas que se inspiram em seu ensinamento.

Só o amor pode nos salvar

Gostaria, antes de concluir, de acenar a um outro efeito benéfico da virtude teologal da caridade sobre a sociedade em que vivemos. A graça, reza um famoso axioma teológico, supõe a natureza, não a destrói, mas a aperfeiçoa[7]. Aplicado à terceira virtude teologal, isso significa que a caridade supões a capacidade e a predisposição natural do ser humano a amar e ser amado. Esta capacidade pode nos salvar hoje de uma tendência em ato, que poderia, se não for corrigida, a uma verdadeira e própria “desumanização”.

Há alguns anos, participei de um debate público em Londres. A moderadora propunha uma série de perguntas a um certo número de teólogos, entre eles, um professor de teologia da universidade de Yale, um bispo e um teólogo anglicanos e eu. A pergunta crucial era a seguinte. Após ter substituído as capacidades operativas do homem com robôs, a técnica já está a ponto de substituir também as suas capacidades mentais com a inteligência artificial. O que resta, portanto, de próprio e exclusivo ao ser humano? Ainda há motivo de considerá-lo à parte no universo? É ainda indispensável, ou não seria nocivo, por natureza?

Quando chegou a minha vez de responder, com o meu pobre e dificultoso inglês, acrescentei uma simples reflexão. Estão trabalhando, eu disse, em um computador que pensa: mas conseguimos imaginar um computador que ama, que se enternece pelas nossas penas e se alegra pelas nossas alegrias? Podemos conceber uma inteligência artificial: mas conseguimos conceber um amor artificial? Talvez seja justamente aqui que devamos colocar o específico do humano e o seu inalienável atributo. Para um crente bíblico, há uma razão que explica este fato: é que fomos criados à imagem de Deus, e “Deus é amor”! (1Jo 4,8).

Apesar de todos os nossos erros e más ações, nós, seres humanos, não somos – e jamais seremos – demais sobre a terra! Ao término das suas reflexões filosóficas sobre o perigo da técnica para o homem moderno, Martin Heidegger, quase jogando a toalha, exclamava: “Só um deus pode nos salvar!”[8]. Podemos parafrasear: só o amor pode nos salvar! Porém, o amor de Deus, certamente não o nosso.

“Nasceu para nós um pequenino”

Voltemos, então, os nossos pensamentos ao Natal, que está às portas. Com a vinda de Cristo, o grande rio da história chegou a uma “eclusa” e recomeça a partir de um nível mais alto. “O que era antigo passou; eis que tudo se fez novo” (2Cor 5,17). Está coberto o grande “desnível” que separava Deus do homem, o Criador da criatura. Não sem razão, daí em diante, a história humana se divide em “antes de Cristo” e “depois de Cristo”.

Existem figuras natalinas ingênuas, mas de profundo significado. Nelas, vê-se o Menino Jesus que, descalço, com neve aos seus pés e uma lâmpada na mão, de noite, esperando diante de uma porta após ter batido. Os pagãos imaginavam o amor como um garotinho, a quem chamavam de Eros. Tratava-se de uma representação simbólica, antes, de um verdadeiro e próprio ídolo. Nós sabemos que o amor realmente se tornou um menino; que ele já é uma realidade, um evento, antes, uma pessoa. “O amor do Pai se fez carne”, assim um autor do II século parafraseava o versículo de João 1,14[9]. O amor realmente se fez menino: o Menino Jesus.

“Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entrarei em sua casa e tomarei a refeição com ele, e ele comigo” (Ap 3,20). Abramos a porta do coração àquele Menino que bate. A coisa mais bonita que podemos fazer no Natal não é, eu dizia, nós oferecermos algo a Deus, mas acolher com estupor o dom do seu próprio Filho, que Deus Pai dá ao mundo.

Diz uma lenda que, entre os pastores que se dirigiram para encontrar o Menino na noite de Natal, havia um pastorzinho tão pobre, que não tinha nada para oferecer à Mãe, e ficava de lado, envergonhado. Todos disputavam para entregar a Maria o próprio presente. A Mãe não conseguia pegar todos, tendo que segurar o Menino Jesus nos braços. Então, vendo-o ali ao lado o pastorzinho com as mãos vazias, toma o Menino e o coloca em seus braços. Não ter nada foi a sua sorte. Façamos com que seja também a nossa!

Unamo-nos ao estupor e à alegria da liturgia que, no Natal, repete – como fato cumprido e não mais simples profecia – as palavras de Isaías (9,5):

Pois nasceu para nós um pequenino,

um filho nos foi dado.

O principado está sobre seus ombros,

e seu nome será:

Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte,

Pai para sempre, Príncipe da paz.

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Tradução de Fr. Ricardo Farias, ofmcap

[1] Cf. Aristóteles, Metafísica, XII,7,1072b.

[2] Cf. Henri de Lubac, Histoire et Esprit, Aubier, Paris 1950, cap. V.

[3] Cf. Giacomo Leopardi, L’infinito.

[4] Cf. Inácio de Antioquia, Carta aos Romanos, saudação inicial.

[5] Cf. Agostinho, De civitate Dei, 14,28.

[6] Cf. Agostinho, De Genesi ad litteram, 11, 15, 20 (PL 32, 582).

[7] Cf. Tomás de Aquino, S.Th. I, q. 2. a. 2 ad 1 (gratia [praesupponit] naturam”); I, q. 1, a. 8, ad 2 (gratia non tollit naturam, sed perficit).

[8] Cf. Martin Heidegger, Antwort. Martin Heidegger im Gespräch, Gesamtausgabe, vol. 16, Frankfurt 1975.

[9] Cf. Evangelium Veritats, 23 (I Vangeli gnostici, a cura di L. Moraldi, Milano, Adelphi, 1984, p. 33).