FIDUCIA SUPPLICANS-DEZ.2023
DECLARAÇÃO
FIDUCIA SUPPLICANS
Sobre o Significado Pastoral das Bênçãos
(OS TEXTOS EM DESTAQUE FORAM ASSINALADOS PELO NOSSO ARCEBISPO DOM JÚLIO ENDI AKAMINE)
Apresentação
A presente Declaração considerou várias questões apresentadas a este Dicastério, tanto nos últimos anos como mais recentemente. Para a sua redação, conforme a praxe, foram consultados especialistas, realizou-se um amplo processo de elaboração e o projeto foi discutido no Congresso da Seção Doutrinária do Dicastério. Durante esse tempo de elaboração do documento, não faltaram conversas com o Santo Padre. Finalmente, a Declaração foi apresentada ao Santo Padre, que a aprovou com sua assinatura.
Durante o estudo da matéria/objeto deste documento, foi dada a conhecer a resposta do Santo Padre aos Dubia de alguns Cardeais, que ofereceu esclarecimentos importantes para a reflexão agora aqui oferecida, e que representa um elemento decisivo para o trabalho do Dicastério. Uma vez que «a Cúria Romana é, em primeiro lugar, um instrumento de serviço ao Sucessor de Pedro» (Const. Apostólica Praedicate Evangelium, II, 1), o nosso trabalho deve favorecer, juntamente com a compreensão da doutrina perene da Igreja, a aceitação do ensinamento do Santo Padre.
Como na resposta já mencionada do Santo Padre aos Dubia de dois Cardeais, a presente Declaração permanece firme no ensinamento tradicional da Igreja sobre o matrimônio, não permitindo qualquer tipo de rito litúrgico ou bênção semelhante a um rito litúrgico que possa causar confusão. No entanto, o valor deste documento é oferecer uma contribuição específica e inovadora para o significado pastoral das bênçãos, permitindo ampliar e enriquecer a compreensão clássica das bênçãos intimamente vinculada a uma perspectiva litúrgica. Tal reflexão teológica, baseada na visão pastoral do Papa Francisco, implica um verdadeiro desenvolvimento do que foi dito sobre as bênçãos no Magistério e nos textos oficiais da Igreja. Isso explica por que o texto tomou a forma de uma “Declaração”.
E é justamente nesse contexto que se pode entender a possibilidade de abençoar aos casais em situação irregular e aos casais homoafetivos, sem
validar oficialmente seu status nem alterar de forma alguma o ensinamento perene da Igreja sobre o matrimônio.
Esta Declaração pretende também ser uma homenagem ao Povo fiel de Deus, que adora o Senhor com tantos gestos de profunda confiança na sua misericórdia e que, com essa atitude, vem constantemente pedir uma bênção à Mãe Igreja.
Víctor Manuel Card. FERNÁNDEZ
Prefeito
INTRODUÇÃO
1. A confiança suplicante do Povo fiel de Deus recebe o dom da bênção que brota do coração de Cristo através da sua Igreja. Como lembra, pontualmente, o Papa Francisco, «A grande bênção de Deus é Jesus Cristo, é o grande dom de Deus, o seu Filho. É uma bênção para toda a humanidade, é uma bênção que nos salvou a todos. Ele é a Palavra eterna com a qual o Pai nos abençoou, «quando éramos ainda pecadores» (Rm 5, 8) diz São Paulo: Palavra que se fez carne e foi oferecida por nós na cruz»1.
2. Sustentado por tão grande e consoladora verdade, este Dicastério tomou em consideração algumas questões, formais e informais, sobre a possibilidade de abençoar casais do mesmo sexo e sobre a possibilidade de oferecer novos esclarecimentos, à luz da atitude paterna e pastoral do Papa Francisco, sobre o Responsum ad dubium2formulado pela então Congregação para a Doutrina da Fé e publicado em 22 de fevereiro de 2021.
3. Este Responsum suscitou muitas reações diferentes: alguns acolheram favoravelmente a clareza deste documento e a sua coerência com o ensinamento constante da Igreja; outros não concordaram com a resposta negativa à pergunta ou não a consideraram suficientemente clara na sua redação ou nas razões expostas na nota explicativa que a acompanha. Visando responder a estes últimos, com caridade fraterna, parece oportuno voltar ao tema e oferecer uma visão que componha coerentemente os aspectos doutrinais com aqueles pastorais, porque «cada ensinamento da doutrina deve situar-se na atitude evangelizadora que desperte a adesão do coração com a proximidade, o amor e o testemunho»3.
I. A BÊNÇÃO NO SACRAMENTO DO MATRIMÔNIO
4. A resposta recente do Santo Padre Francisco à segunda das cinco perguntas propostas por dois Cardeais4oferece a possibilidade de aprofundar mais no tema, especialmente nas suas consequências de ordem pastoral. Trata-se de evitar que «se reconheça como matrimônio algo que não o é»5. Portanto, são inadmissíveis ritos e orações que possam criar confusão entre o que é constitutivo do matrimônio – enquanto «união exclusiva, estável e indissolúvel entre um homem e uma mulher, naturalmente aberta a gerar filhos»6– e aquilo que o contradiz. Esta convicção funda-se na perene doutrina católica do matrimônio. É somente nesse contexto que as relações sexuais encontram seu significado natural, adequado e plenamente humano. O ensinamento da Igreja sobre este ponto permanece firme.
5. Esta é também a compreensão do matrimônio oferecida pelo Evangelho. Por esta razão, no que diz respeito às bênçãos, a Igreja tem o direito e o dever de evitar qualquer tipo de rito que possa contradizer essa convicção ou levar a qualquer confusão. Tal é também o significado do Responsum da, então, Congregação para a Doutrina da Fé, onde se afirma que a Igreja não tem o poder de conceder a bênção a uniões entre pessoas do mesmo sexo.
6. Importa destacar que, sobretudo no caso do rito do sacramento do matrimônio, não se trata de uma bênção qualquer, mas de um gesto reservado ao ministro ordenado. Nesse caso, a bênção do ministro ordenado está diretamente ligada à união específica de um homem e uma mulher que, com mútuo consentimento, estabelecem uma aliança exclusiva e indissolúvel. Isso nos permite demonstrar melhor o risco de confundir uma bênção dada a qualquer outra união, com o rito próprio do sacramento do matrimônio.
II. O SIGNIFICADO DAS VÁRIAS BÊNÇÃOS
7. Por outro lado, a resposta do Santo Padre, mencionada anteriormente, convida-nos a fazer o esforço por ampliar e enriquecer o sentido das bênçãos.
8. As bênçãos podem ser consideradas entre os sacramentais mais difundidos e em constante evolução. De fato, eles nos levam a perceber a presença de Deus em todos os acontecimentos da vida e recordam que, mesmo quando usa as coisas criadas, o ser humano é convidado a buscar a Deus, a amá-lo e a servi-lo fielmente7. Por esta razão, as bênçãos têm por destinatárias as pessoas, os objetos de culto e de devoção, as imagens sagradas, os lugares de vida, de trabalho e de sofrimento, os frutos da terra e do trabalho humano, e todas as realidades criadas que se referem ao Criador e que, com sua beleza, o louvam e o bendizem.
O sentido litúrgico dos ritos de bênção
9. Desde um ponto de vista estritamente litúrgico, a bênção exige que aquilo que se abençoa esteja em conformidade com a vontade de Deus, manifestada nos ensinamentos da Igreja.
10. Com efeito, as bênçãos são celebradas em virtude da fé e se ordenam ao louvor de Deus e ao benefício espiritual do seu povo. Como explica o Ritual Romano, «para deixar isso mais claro, as fórmulas de bênção, conforme antiga tradição, tendem como principal objetivo glorificar a Deus por seus dons, implorar seus benefícios e afastar do mundo o poder do maligno»8. Por isso, aqueles que invocam a bênção de Deus através da Igreja são convidados a intensificar «as suas disposições interiores naquela fé para a qual nada é impossível» e a confiar «naquela caridade que nos exorta a guardar os mandamentos de Deus»9. Por esta razão, se por um lado «sempre e em toda a parte nos é oferecida a oportunidade de louvar a Deus através de Cristo no Espírito Santo, de O invocar e de O agradecer», por outro lado, a preocupação é «que se trate de coisas, lugares ou circunstâncias que não contradigam a norma ou o espírito do Evangelho»10. Esta é uma compreensão litúrgica das bênçãos, enquanto se tornam ritos oficialmente propostos pela Igreja.
11. Com base nestas considerações, a Nota Explicativa ao Responsum da então Congregação para a Doutrina da Fé recorda que, quando, com um rito litúrgico adequado, é invocada uma bênção sobre algumas relações humanas, o que é abençoado deve poder corresponder aos desígnios de Deus inscritos na Criação e plenamente revelados por Cristo, o Senhor. Por conseguinte, uma vez que a Igreja sempre considerou moralmente lícitas apenas as relações sexuais vividas dentro do matrimônio, ela não tem poder para conferir sua bênção litúrgica quando esta pode, de algum modo, oferecer uma forma de legitimidade moral a uma união que presume de ser um matrimônio ou a uma prática sexual extramatrimonial. A substância deste pronunciamento foi reiterada pelo Santo Padre em suas Respostas aos Dubia de dois Cardeais.
12. Devemos também evitar o risco de reduzir o significado das bênçãos apenas a este ponto de vista, porque isso nos levaria a reivindicar, para uma simples bênção, as mesmas condições morais que são exigidas para a recepção dos sacramentos. Esse risco exige que essa perspectiva seja ampliada ainda mais. Com efeito, existe o perigo de um gesto pastoral, tão caro e difundido, ser submetido a demasiados requisitos morais prévios que, sob o pretexto de controle, podem ofuscar a força incondicional do amor de Deus na qual o gesto de benção se fundamenta.
13. É precisamente a este respeito que o Papa Francisco nos exortou a não «perder a caridade pastoral que deve permear todas as nossas decisões e atitudes» e a evitar sermos «juízes que apenas negam, rejeitam e excluem»11. Abaixo, respondemos à sua proposta desenvolvendo uma compreensão mais ampla das bênçãos.
Bênçãos na Sagrada Escritura
14. Para refletir sobre as bênçãos, tendo em conta distintos pontos de vista, é preciso deixar-nos iluminar, primeiramente, pela voz da Sagrada Escritura.
15. «O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor te mostre a sua face e conceda te sua graça! O Senhor volva o seu rosto para ti e te dê a paz!» (Nm 6, 24-26). Esta “bênção sacerdotal” que encontramos no Antigo Testamento, precisamente no Livro dos Números, tem um carácter “descendente” porque representa a invocação da bênção que desce de Deus sobre o homem: esta constitui um dos textos mais antigos de bênção divina. Há também um segundo tipo de bênção que encontramos nas páginas bíblicas, aquela que “sobe” da terra para o céu, para Deus. Abençoar é louvar, celebrar, agradecer a Deus pela sua misericórdia e fidelidade, pelas maravilhas que criou e por tudo o que aconteceu por sua vontade: «Bendize, ó minha alma, o Senhor, e tudo o que existe em mim bendiga o seu santo nome» (Sl 103, 1).
16. A Deus que abençoa, também nós respondemos abençoando. Melquisedeque, rei de Salém, abençoa Abrão (Cf. Gn 14, 19); Rebeca é abençoada pelos seus familiares, pouco antes de se tornar esposa de Isaac (Cf. Gn 24, 60), que, por sua vez, abençoa o seu filho Jacó (Cf. Gn 27, 27). Jacó abençoa ao Faraó (Cf. Gn 47,10), aos seus netos Efraim e Manassés (Cf. Gn 48, 20) e a todos os seus doze filhos (Cf. Gn 49, 28). Moisés e Arão abençoam a comunidade (Cf. Ex 39, 43; Lv 9, 22). Os chefes de família abençoam seus filhos por ocasião dos matrimônios, antes de empreender uma viagem, na proximidade da morte. Essas bênçãos aparecem como um dom superabundante e incondicional.
17. A bênção presente no Novo Testamento conserva substancialmente o mesmo significado do veterotestamentário. Encontramos o dom divino que “desce”, a gratidão do homem que “sobe” e a bênção dada pelo homem que “se estende” aos seus iguais. Zacarias, tendo recuperado o uso da fala, abençoa o Senhor pelas suas obras maravilhosas (Cf. Lc 1, 64). O velho Simeão, tendo a Jesus recém-nascido nos braços, abençoa a Deus por lhe ter concedido a graça de contemplar o Messias salvador e depois abençoa os seus pais Maria e José (Cf. Lc 2, 34). Jesus bendiz ao Pai no célebre hino de louvor e alegria a Ele dirigido: «Eu te bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra» (Mt 11, 25).
18. Em continuidade com o Antigo Testamento, a bênção em Jesus não é apenas ascendente, em referência ao Pai, mas também descendente, derramada sobre os outros como gesto de graça, proteção e bondade. O próprio Jesus realizou e promoveu essa prática. Por exemplo, abençoa as crianças: «Em seguida, ele as abraçou e as abençoou, impondo-lhes as mãos» (Mc 10, 16). E a história terrena de Jesus terminará precisamente com uma bênção final reservada aos Onze, pouco antes de subir ao Pai: «e, levantando as mãos, os abençoou. Enquanto os abençoava, separou-se deles e foi arrebatado ao céu». A última imagem de Jesus na terra são suas mãos levantadas, no ato de abençoar.
19. No seu mistério de amor, através de Cristo, Deus comunica à sua Igreja o poder de abençoar. Concedida por Deus aos seres humanos e por eles concedida ao próximo, a bênção transforma-se em inclusão, solidariedade e pacificação. É uma mensagem positiva de conforto, atenção e encorajamento. A bênção expressa o abraço misericordioso de Deus e a maternidade da Igreja, que convida os fiéis a terem os mesmos sentimentos de Deus para com os seus próprios irmãos e irmãs.
Uma compreensão teológico-pastoral das bênçãos
20. Aquele que pede uma bênção se mostra necessitado da presença salvífica de Deus em sua história, e aquele que pede uma bênção à Igreja reconhece-a como sacramento da salvação que Deus oferece. Buscar a bênção na Igreja é admitir que a vida eclesial brota do ventre da misericórdia de Deus e nos ajuda a seguir em frente, a viver melhor, a responder à vontade do Senhor.
21. Para nos ajudar a compreender o valor de uma abordagem mais pastoral das bênçãos, o Papa Francisco exortou-nos a contemplar, com uma atitude de fé e misericórdia paterna, o fato que «ao pedir uma bênção, expressamos um pedido de auxílio a Deus, um apelo para poder viver melhor, uma confiança num Pai que pode nos ajudar a viver melhor»12. Este pedido deve ser, em todos os sentidos, valorizado, acompanhado e recebido com gratidão. As pessoas que vêm espontaneamente pedir uma bênção mostram com este pedido a sua sincera abertura à transcendência, a confiança do seu coração que não se fia apenas da sua própria força, a sua necessidade de Deus e o desejo de sair das medidas estreitas deste mundo fechado nos seus limites.
22. Como nos ensina Santa Teresa do Menino Jesus, para além desta confiança, «não há outra via que devamos percorrer para ser conduzidos ao Amor que tudo dá. Com a confiança, a fonte da graça transborda na nossa vida [...]. A atitude mais adequada é depositar a confiança do coração fora de nós mesmos, ou seja, na infinita misericórdia de um Deus que ama sem limites [...]. O pecado do mundo é imenso, mas não é infinito. Ao contrário, o amor misericordioso do Redentor… esse, sim, é infinito»13.
23. Quando estas expressões de fé são consideradas fora de um contexto litúrgico, encontramo-nos num ambiente de maior espontaneidade e liberdade, mas «a liberdade diante dos exercícios de piedade não deve, portanto, significar pouca consideração ou desprezo por estes. O caminho a seguir é o de avaliar correta e sabiamente as não poucas riquezas da piedade popular, as Potencialidades que ela contém»14. As bênçãos tornam-se, assim, um recurso pastoral a valorizar e não um risco ou um problema.
24. Consideradas do ponto de vista da pastoral popular, as bênçãos são valorizadas como atos de devoção que «encontram seu lugar próprio fora da celebração da Eucaristia e dos demais sacramentos [...]. A linguagem, o ritmo, o desenvolvimento e os acentos teológicos da piedade popular diferem daqueles correspondentes às ações litúrgicas». Pela mesma razão, «é necessário evitar acrescentar modos próprios da “celebração litúrgica” aos exercícios de piedade, que devem conservar o seu estilo, a sua simplicidade e a sua linguagem característica»15.
25. Também a Igreja deve evitar basear a sua prática pastoral na rigidez de certos esquemas doutrinais ou disciplinares, sobretudo quando estes dão «lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias em controlar»16. Portanto, quando as pessoas invocam uma bênção, ela não deve ser submetida a uma análise moral aprofundada como pré-condição para conferi-la. Não se deve pedir a eles que tenham perfeição moral prévia.
26. Nesta perspectiva, as Respostas do Santo Padre ajudam a aprofundar melhor, desde o ponto de vista pastoral, o pronunciamento feito pela então Congregação para a Doutrina da Fé em 2021, porque de fato convidam a um discernimento quanto à possibilidade de «formas de bênção, solicitadas por uma ou várias pessoas, que não transmitam uma concepção equivocada do matrimônio»17 e que levem em conta também o fato de que, em situações moralmente inaceitáveis do ponto de vista objetivo, «a própria caridade pastoral exige que não tratemos simplesmente como “pecadores” a outras pessoas cuja culpabilidade ou responsabilidade podem estar atenuadas por diversos fatores que influenciam na imputabilidade subjetiva»18.
27. Na catequese citada ao início desta Declaração, o Papa Francisco propôs uma descrição deste tipo de bênção que é oferecida a todos, sem pedir nada. Vale a pena ler de coração aberto estas palavras que nos ajudam a acolher o sentido pastoral das bênçãos oferecidas sem condições: «É Deus que abençoa. Nas primeiras páginas da Bíblia, há uma repetição contínua de bênçãos. Deus abençoa, mas também os homens abençoam, e depressa descobre-se que a bênção possui uma força especial, que acompanha o destinatário ao longo da vida e dispõe o coração humano a deixar-se mudar por Deus [...]. Deste modo, nós somos mais importantes para Deus do que todos os pecados que podemos cometer, porque Ele é pai, Ele é mãe, Ele é puro amor, Ele abençoou-nos para sempre. E Ele nunca deixará de nos abençoar. Uma forte experiência é ler estes textos bíblicos de bênção numa prisão, ou numa comunidade de recuperação. Fazer com que as pessoas sintam que permanecem abençoadas apesar dos seus graves erros, e que o Pai celeste continua a amá-las e espera que elas finalmente se abram ao bem. Se até os seus parentes mais próximos as abandonaram, porque as consideram irrecuperáveis, para Deus continuam a ser sempre filhas»19.
28. Há várias ocasiões em que as pessoas vêm espontaneamente pedir uma bênção, tanto nas peregrinações, nos santuários e na rua, quando encontram um sacerdote. Como exemplo, podemos recorrer ao livro litúrgico De Benedictionibus que prevê uma série de ritos de bênção para as pessoas: idosos, enfermos, participantes na catequese ou num encontro de oração, peregrinos, quem vai partir de viagem, grupos e associações de voluntários etc. Tais bênçãos são dirigidas a todos, nenhuma pode ser excluída. Nos preâmbulos do Rito de bênção dos idosos, por exemplo, afirma-se que a intenção desta bênção é conseguir «que os idosos recebam dos irmãos o testemunho de respeito e agradecimento, quando damos graças a Deus, juntamente com eles, pelos benefícios que d’Ele receberam e pelas boas obras que com o seu auxílio praticaram»20. Neste caso, o objeto da bênção é a pessoa do idoso, por quem e com quem são dados graças a Deus pelo bem realizado por ele e pelos benefícios recebidos. Ninguém pode ser impedido desta ação de graças e cada um, mesmo vivendo em situações não ordenadas ao desígnio do Criador, têm elementos positivos pelos quais louvar ao Senhor.
29. Na perspectiva da dimensão ascendente, quando se toma consciência dos dons e do amor incondicional do Senhor, mesmo em situações de pecado, sobretudo quando se escuta uma oração, o coração que crê eleva a Deus o seu louvor e a sua bênção. Não se impede a ninguém essa forma de bênção. Todos – individualmente ou em união com os outros – podem elevar seu louvor e gratidão a Deus.
30. Mas o sentido popular das bênçãos inclui também o valor da bênção descendente. Se «não é conveniente que uma Diocese, uma Conferência Episcopal ou qualquer outra estrutura eclesial habilite constantemente e de modo oficial procedimentos ou ritos para todos os tipos de assuntos»21, a prudência e a sabedoria pastoral podem sugerir que, evitando formas graves de escândalo ou de confusão entre os fiéis, o ministro ordenado se una à oração daquelas pessoas que, embora estejam numa união que de modo algum pode ser comparada ao matrimônio, desejam confiar-se ao Senhor e à sua misericórdia, invocar a sua ajuda, deixar-se guiar para uma maior compreensão do seu desígnio de amor e de vida.
III. AS BÊNÇÃOS DE CASAIS EM SITUAÇÕES IRREGULARES E DE CASAIS DO MESMO SEXO
31. No horizonte aqui delineado está a possibilidade de bênçãos de casais em situações irregulares e de casais do mesmo sexo, cuja forma não deve ser fixada ritualmente pelas autoridades eclesiásticas, para não causar confusão com a bênção própria do sacramento do matrimônio. Nesses casos, é concedida uma bênção que não só tem um valor ascendente, mas também é a invocação de uma bênção descendente do próprio Deus sobre aqueles que, reconhecendo se como desamparados e necessitados de sua ajuda, não reivindicam a legitimidade de seu próprio status, mas rezam para que tudo o que é verdadeiro, bom e humanamente válido, presente em suas vidas e relações, seja abençoado, sanado e elevado pela presença do Espírito Santo. Estas formas de bênção exprimem uma súplica a Deus para que conceda aquelas ajudas que provêm dos impulsos do seu Espírito – que a teologia clássica chama de “graças atuais” – para que as relações humanas amadureçam e cresçam na fidelidade à mensagem do Evangelho, se libertem das suas imperfeições e fragilidades e se expressem na dimensão cada vez maior do amor divino.
32. Com efeito, a graça de Deus atua na vida daqueles que não se consideram justos, mas se reconhecem humildemente pecadores como todos os outros. Essa é capaz de orientar todas as coisas de acordo com os desígnios misteriosos e imprevisíveis de Deus. Por isso, com incansável sabedoria e maternidade, a Igreja acolhe todos aqueles que se aproximam de Deus com um coração humilde, acompanhando-os com aqueles auxílios espirituais que permitem a todos compreender e realizar plenamente a vontade de Deus em sua existência22.
33. Trata-se de uma bênção que, embora não esteja incluída num rito litúrgico23, une a oração de intercessão à invocação da ajuda de Deus por aqueles que humildemente se voltam para Ele. Deus nunca afasta aqueles que vêm a Ele! Afinal, a bênção oferece às pessoas um meio para aumentar sua confiança em Deus. O pedido de uma bênção expressa e alimenta a abertura à transcendência, à piedade e à proximidade a Deus em mil circunstâncias concretas da vida, e isso não é pouca coisa no mundo em que vivemos. É uma semente do Espírito Santo que deve ser cuidada, não impedida.
34. A própria liturgia da Igreja convida-nos a esta atitude confiante, mesmo em meio aos nossos pecados, falta de méritos, fraquezas e confusões, como testemunha esta belíssima oração coleta tomada do Missal Romano: «Deus eterno e omnipotente, que, no vosso amor infinito, cumulais de bens os que Vos imploram muito além dos seus méritos e desejos, pela vossa misericórdia, libertai a nossa consciência de toda a inquietação e dai-nos o que nem sequer ousamos pedir» (XXVII Domingo do Tempo Comum). Quantas vezes, de fato, através de uma simples bênção do pastor, que neste gesto não pretende sancionar ou legitimar nada, as pessoas podem experimentar a proximidade do Pai para “além dos seus desejos e dos seus méritos”.
35. Portanto, a sensibilidade pastoral dos ministros ordenados também deve ser educada para realizar espontaneamente bênçãos que não se encontram no Ritual de bençãos.
36. A este respeito, é essencial acolher a solicitude do Papa, para que estas bênçãos não ritualizadas não deixem de ser um simples gesto que proporciona um meio eficaz de aumentar a confiança em Deus nas pessoas que as pedem, evitando que se tornem um ato litúrgico ou semi-litúrgico, semelhante a um sacramento. Isso constituiria um grave empobrecimento, pois submeteria um gesto de grande valor na piedade popular a um controle excessivo, privando assim os ministros da liberdade e da espontaneidade no acompanhamento da vida das pessoas.
37. A propósito, recordamos as seguintes palavras, em partes já citadas, do Santo Padre: «As decisões que, em certas circunstâncias, podem fazer parte da prudência pastoral, não devem necessariamente tornar-se uma norma. Ou seja, não é apropriado que uma Diocese, uma Conferência Episcopal ou qualquer outra estrutura eclesial permita constantemente e de forma oficial procedimentos ou ritos para todos os tipos de assuntos [...]. O Direito Canônico não deve e não pode abranger tudo, e as Conferências Episcopais também não devem pretender fazê-lo com seus diversos documentos e protocolos, porque a vida da Igreja passa por muitos canais além daqueles normativos»24. Assim, o Papa Francisco recordou que « aquilo que faz parte dum discernimento prático duma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma», porque isso «daria origem a uma casuística insuportável»25.
38. Por esta razão, não deve ser promovido ou previsto um ritual para as bênçãos de casais em situação irregular, mas também não deve ser evitada ou proibida a proximidade da Igreja a todas as situações em que a ajuda de Deus é solicitada através de uma simples bênção. Na breve oração que pode preceder esta bênção espontânea, o ministro ordenado pode pedir por estes a paz, a saúde, o espírito de paciência, diálogo e ajuda-mútua, mas também a luz e a força de Deus para poder realizar plenamente a sua vontade.
39. Em todo o caso, precisamente para evitar qualquer forma de confusão ou escândalo, quando a oração de bênção é solicitada por um casal em situação irregular, mesmo que seja conferida fora dos ritos previstos pelos livros litúrgicos, essa bênção nunca será dada no contexto dos ritos de união civil, nem em relação a estes. Nem mesmo com vestes, gestos ou palavras próprias de um matrimônio. O mesmo se aplica quando a bênção for solicitada por um casal do mesmo sexo.
40. Por outro lado, essa bênção pode ser dada noutros contextos, como uma visita a um santuário, o encontro com um sacerdote, a oração feita em um grupo ou durante uma peregrinação. Por certo, estas bênçãos que são dadas, não através das formas rituais próprias da liturgia, mas como expressão do coração materno da Igreja, análogas às que emanam do mais profundo da piedade popular, não se destinam a legitimar nada, mas apenas a abrir a própria vida a Deus, a pedir a sua ajuda para viver melhor e a invocar o Espírito Santo para que os valores evangélicos possam ser vividos com maior fidelidade.
41. Tudo o quanto dito nesta Declaração, sobre as bênçãos de casais do mesmo sexo, é suficiente para orientar o discernimento prudente e paternal dos ministros ordenados a esse respeito. Portanto, além das indicações acima, não se deve esperar outras respostas sobre possíveis modalidades para regular detalhes nem aspectos práticos desse tipo de bênção26.
IV. A IGREJA É O SACRAMENTO DO AMOR INFINITO DE DEUS
42. A Igreja continua a elevar aquelas orações e súplicas que o próprio Cristo, com fortes gritos e lágrimas, ofereceu nos dias de sua vida terrena (Cf. Hb 5, 7) e que, por isso mesmo, gozam de uma eficácia particular. Deste modo, «a comunidade eclesial exerce a sua verdadeira função de conduzir as almas a Cristo não só através da caridade, do exemplo e dos atos de penitência, mas também através da oração»27.
43. Assim, a Igreja é o sacramento do amor infinito de Deus. Por isso, mesmo quando a relação com Deus estiver obscurecida pelo pecado, pode-se sempre pedir uma bênção, voltando-se para Ele, como Pedro o fez na tempestade, ao suplicar a Jesus: «Senhor, salva-me» (Mt 14,30). Em algumas situações, desejar e receber uma bênção pode ser o bem possível. O Papa Francisco nos lembra que «um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades»28. Deste modo, «o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado»29.
44. Qualquer bênção será ocasião para um renovado anúncio do querigma, um convite a aproximar-se cada vez mais do amor de Cristo. O Papa Bento XVI ensinava: «A Igreja, como Maria, é mediadora da bênção de Deus para o mundo: acolhendo Jesus recebe a bênção e a transmite levando Jesus aos demais. Ele é a misericórdia e a paz que o mundo não pode dar para si mesmo e que o mundo precisa tanto e mais do que pão»30.
45. À luz de tudo o que foi dito acima, seguindo o ensinamento de autoridade do Santo Padre Francisco, este Dicastério quer, por fim, recordar que «esta é a raiz da mansidão cristã, a capacidade de se sentir abençoado e a capacidade de abençoar [...]. Este mundo precisa de bênção e podemos dar a bênção e receber a bênção. O Pai nos ama. E tudo o que nos resta é a alegria de o abençoar e a alegria de lhe agradecer, e de aprender com Ele a não amaldiçoar, mas a abençoar»31. Deste modo, cada irmão e cada irmã poderão sentir-se na Igreja sempre peregrinos, sempre suplicantes, sempre amados e, apesar de tudo, sempre abençoados.
Víctor Manuel Card. FERNÁNDEZ
Prefeito
Mons. Armando MATTEO
Secretário da Seção Doutrinal
Audiência do dia 18 de dezembro de 2023.
Francisco
1Francisco, Catequesis sobre la oración: la bendición (2 diciembre 2020), L’Osservatore Romano, 2 diciembre 2020, p. 8.
2 Cf. Congregación para la Doctrina de la Fe, «Responsum» ad «dubium» de benedictione unionem personarum eiusdem sexus et Nota esplicativa, AAS 113 (2021), 431-434.
3Francisco, Exhort. Ap. Evangelii gaudium (24 noviembre 2013), n. 42, AAS 105 (2013), 1037-1038.
4 Cf. Francisco, Respuestas del Santo Padre a los Dubia propuestos por dos Cardenales (11 julio 2023).
5Ibidem, ad dubium 2, c.
6Ibidem, ad dubium 2, a.
7 Cf. Rituale Romanum ex decreto Sacrosancti Oecumenici Concilii Vaticani II instauratum auctoritate Ioannis Pauli PP. II promulgatum, De benedictionibus, Editio typica, Praenotanda, Typis Polyglottis Vatianis, Civitate Vaticana 1985, n. 12; en la edición española de la Comisión Episcopal de Liturgia, Bendicional, Coeditores litúrgicos, Barcelona 1986, n. 12.
8Ibidem, n. 11: “Quo autem clarius hoc pateat, antiqua ex traditione, formulae benedictionum eo spectant ut imprimis Deum pro eius donis glorificent eiusque impetrent beneficia atque maligni potestatem in mundo compescant.”
9Ibidem, n. 15: “Quare illi qui benedictionem Dei per Ecclesiam expostulant, dispositiones suas ea fide confirment, cui omnia sunt possibilia; spe innitantur, quae non confundit; caritate praesertim vivificentur, quae mandata Dei servanda urget.”
10 Ibidem, n. 13: “Semper ergo et ubique occasio praebetur Deum per Christum in Spiritu Sancto laudandi, invocandi eique gratias reddendi, dummodo agatur de rebus, locis, vel adiunctis quae normae vel spiritui Evangelii non contradicant.”
11 Francisco, Respuestas del Santo Padre a los Dubia propuestos por dos Cardenales, ad dubium 2, d.
12 Ibidem, ad dubium 2, e.
13 Francisco, Exhort. Ap. C’est la confiance (15 octubre 2023), nn. 2, 20, 29.
14 Congregación para el Culto Divino y la Disciplina de los Sacramentos, Directorio sobre la piedad popular y la liturgia. Principios y orientaciones, Librería Editrice Vaticana, Ciudad del Vaticano 2002, n. 12: «La libertad frente a los ejercicios de piedad, no debe significar, por lo tanto, escasa consideración ni desprecio de los mismos. La vía por seguir es la de valorar correcta y sabiamente las no escasas riquezas de la piedad popular, las potencialidades que encierra».
15 Ibidem, n. 13.
16 Francisco, Exhort. Ap. Evangelii gaudium (24 noviembre 2013), n. 94, AAS 105 (2013), 1060. 17 Francisco, Respuestas del Santo Padre a los Dubia propuestos por dos Cardenales, ad dubium 2, e. 18 Ibidem, ad dubium 2, f.
19 Francisco, Catequesis sobre la oración: la bendición (2 diciembre 2020), L’Osservatore Romano, 2 diciembre 2020, p. 8.
20 De Benedictionibus, n. 258: “Haec benedictio ad hoc tendit ut ipsi senes a fratribus testimonium accipiant reverentiae grataeque mentis, dum simul cum ipsis Domino gratias reddimus pro beneficiis ab eo acceptis et pro bonis operibus eo adiuvante peractis.”; en la edición española de la Comisión Episcopal de Liturgia, Bendicional, Coeditores litúrgicos, Barcelona 1986, n. 260.
21 Francisco, Respuestas del Santo Padre a los Dubia propuestos por dos Cardenales, ad dubium 2, g.
22 Cfr. Francisco, Exhort. Ap. Post-sinodal Amoris laetitia (19 marzo 2016), n. 250, AAS 108 (2016), 412-413. 23 Cfr. Congregación para el Culto Divino y la Disciplina de los Sacramentos, Directorio sobre la piedad popular y la liturgia, n. 13: «La diferencia objetiva entre los ejercicios de piedad y las prácticas de devoción respecto de la Liturgia debe hacerse visible en las expresiones cultuales […] los actos de piedad y de devoción encuentran su lugar propio fuera de la celebración de la Eucaristía y de los otros sacramentos».
24 Francisco, Respuestas del Santo Padre a los Dubia propuestos por dos Cardenales, ad dubium 2, g. 25 Francisco, Exhort. Ap. Post-sinodal Amoris laetitia (19 marzo 2016), n. 304, AAS 108 (2016), 436.
26 Cfr. ibidem.
27 Oficio Divino reformado según los decretos del Concilio Ecuménico Vaticano II y promulgado por su santidad el Papa Pablo VI, Liturgia de las Horas según el Rito Romano, Principios y normas para la Liturgia de las Horas, Conferencia Episcopal Española, Coeditores Litúrgicos, Barcelona 1979, n. 17.
28 Francesco, Exhort. Ap. Evangelii Gaudium (24 novembre 2013), n. 44, AAS 105 (2013), 1038-1039. 29 Ibidem, n. 36, AAS 105 (2013), 1035.
30 Benedicto XVII, Homilía de la Santa Misa en la Solemnidad de Santa María, Madre de Dios. XLV Jornada Mundial de la Paz, Basílica Vaticana (1 enero 2012), Insegnamenti VIII, 1 (2012), 3.
31 Francisco, Catequesis sobre la oración: la bendición (2 diciembre 2020), L’Osservatore Romano, 2 diciembre 2020, p. 8.