António Rego Chaves
Esclarece Manuela Mendonça, presidente da Academia Portuguesa da História, no prefácio do presente livro, por cuja coordenação é responsável, que «esta obra não pretende ser uma História de Portugal, mas tão só o conjunto das biografias dos reis e rainhas que lideraram este país nos seus primeiros oito séculos de existência». Vê-se mal como se pode levar a cabo tão ambicioso intento, com pleno proveito para os seus destinatários, que são os leitores, prescindindo como se prescinde de índice onomástico e ideográfico, notas de rodapé e orientação bibliográfica. Enfim, o que está feito está feito, ou seja, reuniram-se em volume textos já publicados em separado, não se evitaram as previsíveis repetições de autor para autor e deu-se à luz um grosso exemplar cujo custo, a rondar os quarenta euros, exigiria um pouco mais de empenhamento por parte da douta Academia.
Como todos estudámos, é certo que uns mais, outros menos, alguma História de Portugal, decerto cada um de nós tem os seus temas e monarcas preferidos durante o longo período que se iniciou em meados do século XII e terminou em 1910. Por mim, não me esqueço do Afonso Henriques que, com razão ou sem ela, se teria recusado a beijar a mão ao legado do Papa, dizendo: «Não haveria cardeal nem papa tão honrado que se me desse a mão a beijar eu não lha cortasse pelo cotovelo.» E que, em matéria de teologia, se exprimiria nos seguintes termos perante o enviado de Sua Santidade: «Tão bons livros temos nós cá como vós em Roma; e tão bem sabemos que veio Cristo na virgem Santa Maria como vós lá os romanos.» Recordo também que um cronista inglês do século XII, citado por Herculano, conta que o cardeal Jacinto, querendo depor o bispo de Coimbra em 1187, foi obrigado a sair de Portugal, tendo-o Afonso Henriques ameaçado de lhe cortar um pé caso não lhe obedecesse. É claro que a presidente da Academia Portuguesa da História se move noutro hemisfério, não se dignando debruçar-se ou reflectir sobre tais «lendas anticlericais»…
Outro dos meus assuntos preferidos é Alfarrobeira. Aprendi há muito, com Joaquim Veríssimo Serrão, que a batalha «representou a vitória da facção palaciana de D. Afonso V sobre o único homem [o infante D. Pedro] que não permitiria o seu engrandecimento; o triunfo da corrente senhorial sobre os princípios da centralização régia; a primazia do interesse privado de sentido medieval sobre uma linha política que já anuncia a Idade Moderna». Mais: aprendi também há muito que os grandes senhores, em Alfarrobeira, conseguiram atrasar três décadas a evolução política que lhes seria ruinosa e que só com D. João II se imporia. O Académico de Número Humberto Carlos Baquero Moreno talvez não esteja em desacordo com tão «revolucionárias» ideias, mas a verdade é que não lhe apraz expô-las.
Finalmente, sempre me pareceu interessante a questão de D. Sebastião. Não o sebastianismo e as profecias do Bandarra, mas as verdadeiras razões de Alcácer Quibir. Era D. Sebastião um irresponsável? Borges de Macedo asseverava que «a preocupação diplomática de D. Sebastião e dos seus conselheiros era garantir a independência do seu país, ameaçado pela hegemonia espanhola. Para isso, conceberam uma estratégia específica e não arbitrária, posta em prática entre 1568 e 1574. Ora, o grande obstáculo, não desejado, que se lhes levantou, foi o avanço turco no Norte de África. Em consequência dele, o planeamento diplomático a médio prazo – como hoje se diria –, face à política espanhola, teve de ser modificado: as exigências do Norte de África tinham-se, assim, tornado prioritárias» em detrimento das relações europeias (envolvendo não só a Espanha, como a Inglaterra, a França e o Império Alemão). Na verdade, em 1574, com a subida à chefia do Estado turco de Murad III, verifica-se um período de intensa actividade ofensiva dos otomanos, tanto no Mediterrâneo como na Europa Central. É bem certo que esta tendência terminaria em 1579; mas, como poderiam D. Sebastião e os seus conselheiros «adivinhar», com uma antecedência de cinco anos, que tal sucederia? A Académica de Número Maria do Rosário Themudo Barata Azevedo Cruz, ainda que reconheça sem reservas a existência da ameaça turca, estaria longe de subscrever, segundo creio, todos estes raciocínios.
Lidas uma a uma as 831 páginas da obra, é altura de recomendar ao eventual leitor que separe o trigo do joio, algum trigo e vário joio, o que nem sempre será fácil, mas que é praticável desde que analise com muita atenção a primeira dezena de páginas escrita por cada autor: há quem esteja apenas preocupado em amontoar extensos róis de factos históricos – mas há também quem procure interpretá-los, como é próprio do severo e exigente ofício de historiador. Assim sendo, basta saber o que mais desejamos conhecer: se apenas os acontecimentos, se também a sua interpretação. «Mas é possível escrever sem ideias?» – perguntar-se-á. Perante alguns destes esforçados e reverentes textos, que tão bem espelham uma postura muito acarinhada pela Academia, ouso responder: tudo leva a crer que sim – que é mesmo possível escrever sem ideias…
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Reis estudados neste volume e respectivos biógrafos: D. Afonso Henriques (Manuela Mendonça); D. Sancho I (Luís Miguel Duarte); D. Afonso II (Maria Teresa Nobre Veloso); D. Sancho II (José Varandas); D. Afonso III (Maria Alegria Fernandes Marques); D. Dinis (Maria José Azevedo Santos); D. Afonso IV (Julieta Araújo); D. Pedro I (Maria José Azevedo Santos); D. Fernando (Armando Alberto Martins); D. João I (Maria Helena da Cruz Coelho); D. Duarte (Margarida Garcez Ventura); D. Afonso V (Humberto Carlos Baquero Moreno); D. João II (Manuela Mendonça); D. Manuel I (José Manuel Garcia); D. João III (Ana Paula Avelar); D. Sebastião (Maria do Rosário Themudo Barata Azevedo Cruz); Cardeal D. Henrique (Carlos Margaça Veiga).
Academia Portuguesa da História, «História dos Reis de Portugal – Da fundação à perda da independência», volume I, 2010, 831 páginas