António Rego Chaves
Autor de obras de referência sobre o século XX, como «A Revolução de 1917», «A Grande Guerra» ou «Pétain», Marc Ferro, ligado à École des Annales, fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre, é também responsável por um livro «escandaloso» que fez publicar em 1981 com o título «Como se conta a história às crianças no mundo inteiro». Neste texto, o historiador recorre aos manuais escolares de diferentes épocas e espaços geográficos para demonstrar que eles visavam, ou reforçar a coesão nacional e favorecer a paz inter-étnica ou inter-religiosa, como na Índia e no Paquistão, ou salvaguardar a identidade nacional, como nos países vítimas do colonialismo, ou legitimar o regime vigente, como na Alemanha do III Reich, na ex-URSS e na China. Fiel à convicção de que «a função do historiador não é brincar aos advogados nem aos procuradores», mas «tentar tornar o passado inteligível», analisando-o sem o julgar, Marc Ferro acumula exemplos de falsificação da verdade histórica em todo o mundo.
A obra salienta que a imagem que construímos de povo a que pertencemos e dos outros povos é em grande parte determinada por aquilo que aprendemos enquanto crianças. Nomeadamente na democrática França, é ainda hoje quase proibido perguntar se Joana d’Arc era lésbica, ou se Carlos IX foi o grande responsável pela matança de São Bartolomeu (e não sua mãe, Catarina de Médicis, uma estrangeira), ou que crimes foram cometidos pelos ocupantes da Argélia nos séculos XIX e XX.
Em «Os Tabus da História», Marc Ferro de alguma forma prossegue nesta linha de investigação, interrogando-se sobre as circunstâncias da morte do czar Nicolau II e de sua família, ou acerca das guerras mundiais ou, ainda, abordando o tema do anti-semitismo e do filo-semitismo. Lembrando que um tabu é «aquilo que calamos por temor, por pudor», escreve: «Claro que os historiadores, a priori, trabalham sem censura alguma, uma vez que têm acesso aos arquivos. Mas durante muito tempo as regras do seu ofício não os predispunham, enquanto analistas da construção do Estado ou da nação, das forças económicas e sociais, da história das ideias, a desenterrar tabus. Os arquivos que então se consultavam dimanavam de instituições públicas, pouco propícias a este género de investigação: iam lá revelar a vida privada das instituições, os segredos de família!» Há, pois, que determinar as origens de certos tabus e revelar os dispositivos que as disfarçam. «É no cerne das instituições – a Igreja, a República, o Partido – que se escondem os segredos do seu poder, a teoria que as legitima. Por isso as instituições mantêm escondidas as marcas da sua origem sem prescindirem de as tomar para fonte da sua legitimidade.»
Primeiro tabu: dramas da guerra. «As exigências da eficácia, as paixões ideológicas cruzam os seus efeitos para multiplicar estes crimes, as contraverdades que depois se quer dissimular.» Segundo: «os arquivos judiciais permitem verificar como foi ‘montada’ e se instituiu a vulgata histórica sobre a morte de Nicolau II e da família imperial». Terceiro: «a tradição religiosa – cristã, judaica, muçulmana – lança um véu sobre as conversões ao judaísmo, na Baixa Antiguidade e na Alta Idade Média, e como este silêncio arrasta a origem, pretensamente semita, de muitos judeus da diáspora».
O capítulo consagrado às guerras mundiais evoca, por exemplo, os motins de 1917 e a sua repressão pelo então general Pétain, «o herói de Verdun», que levou a 554 condenações à morte e 54 fuzilamentos; o importante papel desempenhado por antigos combatentes franceses, alemães e italianos na ascensão do fascismo; a selvajaria dos vencedores; o tratamento dado pela França aos republicanos espanhóis em 1939; o facto de entre Maio e Junho de 1940 cem mil soldados franceses terem sido mortos ou feridos em combate; o destino dos «israelitas» na França ocupada pelos hitlerianos; a não-identificação dos judeus enquanto tais quando se abriram os campos de extermínio; o comportamento das vítimas entre si nesses mesmos locais; o malogro da estratégia anglo-americana dos bombardeamentos aéreos entre 1942 e 1945. Last but not least: «Um dos pontos mais interessantes da II Guerra Mundial é sem dúvida este tabu a posteriori, que não existia para os contemporâneos: dizer que foi o exército soviético que enfraqueceu a Wehrmacht e que foi graças a isso que depois pôde fazer-se o desembarque e os americanos e ingleses puderam salvar, libertar a Europa Ocidental.» (…) «À medida que os anos vão passando, que se vai instalando a Guerra Fria, impondo a historiografia ocidental, acaba-se por reduzir a importância e o papel que a potência soviética desempenhou. E hoje que ela se decompôs tem-se cada vez mais tendência para creditar exclusivamente aos anglo-saxónicos os êxitos militares seguintes. É significativo que, quando se comemorou o desembarque em Junho de 1944, se tenha convidado os alemães e esquecido de convidar os russos.»
Quanto a Nicolau II, concluiu-se não estar provada senão a execução do czar, ao passo que se mantém o mistério acerca das circunstâncias da morte dos seus familiares, incluindo da célebre princesa Anastásia – ao mesmo tempo que nos surge como muito plausível que a hipótese de acordo com a qual todos tinham sido abatidos convinha, na época, tanto aos desígnios dos Vermelhos como aos dos Brancos.
O capítulo intitulado «Judeus: todos semitas?», assinala as maciças conversões ao judaísmo de pessoas que «nem de perto nem de longe eram hebreus», como os berberes. Na maior parte dos casos, os judeus da Europa Central não eram semitas e, como sustentou Arthur Koestler nos anos de 1960, não provinham da diáspora e «poderiam ser descendentes do reino dos cazares, cujo monarca se convertera ao judaísmo e cujas populações se teriam dissolvido entre os séculos IX e XII no meio dos eslavos, dos germanos, dos húngaros.» Claro que estes factos não agradaram nem agradam quer a anti-semitas, quer a filo-semitas, quer aos actuais mas talvez nada legítimos senhores da Terra Prometida por Jeová ao «povo eleito»…
Marc Ferro, «Os Tabus da História», Teorema, 2006, 143 páginas