António Rego Chaves
Dois anos passados sobre o início da polémica acerca de alguns factos relatados por Günter Grass (Dantzig, 1927) em «Descascando a Cebola» – e agora que acaba de publicar «A Câmara Escura», segundo volume das suas memórias –, eis que o leitor português tem acesso ao texto integral de um discurso proferido pelo escritor em 1990, na Universidade Johann Wolfgang von Goethe, em Frankfurt. Pena que, em oportuna introdução, não seja lembrado que o Nobel da Literatura se confessava, no primeiro livro de memórias, responsável por ter sido incorporado, como voluntário, na Waffen-SS, em Setembro de 1944, escassas semanas antes de completar 17 anos, sendo depois feito prisioneiro pelas tropas norte-americanas. O longo silêncio deste intelectual, bem conhecido pelas suas tomadas de posição próximas da esquerda parlamentar alemã, acerca de tais «pormenores» da sua biografia, foi na altura assim explicado pelo próprio, que não negou o seu «sentimento de culpa» e que se tornara co-responsável por uma «ignomínia»: «Até me decidir a escrever sobre a minha juventude, sobre o que me aconteceu quando era jovem, não encontrei esta forma literária. Ela permitiu-me, finalmente, falar e escrever da minha pertença à Waffen-SS.» E acrescentava: «Como pude correr tão inocentemente atrás de uma tal ideologia? Por que não fiz perguntas quando o meu tio foi executado depois do assalto aos correios polacos em Gdansk? Por que não me interroguei quando o meu professor de latim, que tinha dúvidas sobre a vitória final, desapareceu de repente?» A coragem de quem tão frontalmente se expõe em público, ao revelar pensamentos, actos e erros da sua juventude merece, sem dúvida, algum respeito por parte dos seus contemporâneos.
A esta luz é obrigatório ler, segundo nos parece, o discurso de Frankfurt, pois, sem termos presente a ligação de Günter Grass à Waffen-SS – braço militar da organização nazi dirigida por Heinrich Himmler, especialmente activo na perpetuação do genocídio de judeus – dificilmente se pode entender a abordagem da questão de Auschwitz aqui feita pelo autor. É certo que o escritor parte de uma sentença de Adorno – «Escrever um poema depois de Auschwitz é bárbaro, e isto corrói também o conhecimento das razões pelas quais hoje é impossível escrever poemas.» Mas a sua experiência pessoal está sempre latente quando dá a conhecer parte das suas vivências aos seus auditores, ou mesmo quando afirma, referindo-se aos anos 50 do século XX: «Alguns pronunciavam-se, como que num processo de recuperação, claramente contra o nacional-socialismo, isto é, com a ajuda de heróis positivos. Aquela clareza provocava-me desconfiança. Não dava aquele antifascismo recuperado a impressão de um exercício obrigatório, de acomodação oportunista num tempo apostado na acomodação, hipócrita portanto, e obscena em comparação com a resistência ao nacional-socialismo, impotentemente escassa, mas cujos vestígios se comprovam?»
Porém há mais, muito mais, no que diz respeito à Alemanha e aos alemães do pós-guerra: «Como é que eu, dez anos depois [de ter pertencido à Juventude Hitleriana] poderia ter trazido a Resistência para o papel, criado falsamente antifascismo para mim próprio, quando ‘Escrever depois de Auschwitz’ implicava vergonha, vergonha em cada folha branca de papel? No decorrer dos anos cinquenta, a questão que se colocava era mais o protesto contra a falsidade dos tons que se ouviam, contra a arte de fachada que florescia por todo o lado, contra a farta associação de honrados pequeno-burgueses a piscar o olho: se uns não sabiam nada, não tinham suspeitado de nada e se davam agora ares de crianças desencaminhadas por demónios, os outros já tinham sido sempre contra, se não a plenos pulmões, pelo menos em segredo.»
A partir de 1959, depois de uma estada de três anos em Paris, surgem «O Tambor», «O Gato e o Rato» e «O Cão de Hitler». Diria o autor, referindo-se a esta «trilogia de Dantzig»: «Eu queria iluminar de forma clara, trazer à luz do dia, o crime.»
Nos anos 60, Günter Grass inicia uma intervenção política concreta, participando activamente, ao lado do burgomestre de Berlim e futuro chanceler Willy Brandt – um antigo resistente ao hitlerismo –, em diversas campanhas eleitorais dos sociais-democratas do SPD (nomeadamente as de 1965 e 1969, dominadas pela polémica desencadeada contra o ex-nazi e cristão-democrata da CDU, Kurt-Georg Kiesinger, chanceler entre 1966 e 1969). Após a demissão de Willy Brandt, em 1974, afasta-se pouco a pouco da intervenção directa na política, mas, como salienta Jean-Jacques Pollet, não deixará de continuar a denunciar, não apenas os «erros e as dívidas alemãs», como «a cegueira, a ignorância e a negligência das nações». A questão de Cuba, os malefícios da globalização ou a causa do pacifismo não escaparam à sua atenção, sempre ao lado das forças inconformadas com a arrogante hegemonia do imperialismo norte-americano.
Para escândalo de muitos dos seus compatriotas, opor-se-á à reunificação da Alemanha. Sigamos o seu raciocínio: «Nem a Prússia, nem a Baviera, nem mesmo a Áustria, poderiam, isoladamente, ter desenvolvido e levado a cabo o método e a vontade de genocídio organizado; foi necessária a Alemanha toda. Temos todas as razões para termos medo de nós próprios como união capaz de agir. Nada, nenhum sentimento nacional, por mais idilicamente colorido que seja, e também nenhuma afirmação de boa-vontade póstuma podem rasurar, relativizar ou abolir de ânimo leve esta experiência pela qual passámos enquanto criminosos, e pela qual outros, enquanto vítimas, passaram connosco, como alemães unidos. Não podemos passar ao largo de Auschwitz.» O pessimismo patente nestas declarações não parece hoje ter tido, em pleno «reinado» da NATO, sólida razão de ser, mas na altura não eram poucos os dirigentes europeus do Leste e do Oeste que faziam advertências semelhantes às de Günter Grass – incluindo o «florentino» François Mitterrand, Presidente da França, bem conhecido pela sua argúcia e pelo seu pragmatismo em matéria de diplomacia…
Günter Grass, «Escrever depois de Auschwitz», Dom Quixote, 2008, 52 páginas