António Rego Chaves
Mística, Simone Weil? Sem dúvida. Mas anarquista, também? Sim – e por que não? Professora de Filosofia, revolucionária, assalariada da Renault para conhecer e viver na carne a permanente humilhação da condição operária, crítica implacável do «totalitarismo tomista», do nazismo, do estalinismo e do trotskismo, combatente republicana na Guerra de Espanha, descendente de judeus mas antijudaísta, resistente ao ocupante alemão em França, cada um guardará dela e da sua breve existência de 34 anos (1909-1943) a imagem que considerar mais significativa para o século XXI.
Mística, então. Mas uma mística que não abdica, como neste livro a um tempo enigmático e vertiginoso que é «A Gravidade e a Graça», de aplicar uma acutilante inteligência aos dados da fé e da revelação cristãs, inserindo-se na linha aforística do São João da Cruz dos «Dichos de Luz y Amor». Ela, que tanto desejaria ter visto o Vaticano reformar-se radicalmente – «quando leio o catecismo do Concílio de Trento, parece-me não ter nada em comum com a religião que nele está exposta» –, acaba por se assumir como «cristã fora da Igreja», escrevendo ao intelectual católico Gustave Thibon (organizador e autor da introdução a esta antologia póstuma de manuscritos de Simone Weil e a quem a edição portuguesa, sabe-se lá por que abscônditos critérios, além de suprimir o importante prefácio, decidiu chamar «Tibão»): «Estou pronta a morrer pela Igreja mais do que a entrar nela, porque morrer não implica nenhuma mentira.»
Simone Weil foi discípula de René Le Senne e Alain, amiga de René Daumal e Joë Bousquet, interlocutora de dezenas de intelectuais, sindicalistas e ideólogos, mas, sobretudo, solitária e tenaz autodidacta: o resultado das suas reflexões não pode ser reivindicado na íntegra por qualquer filosofia, partido ou confissão. Na «Lettre à un Religieux», dirigida ao padre Couturier, um dominicano, não poderia ter sido mais explícita: «As diversas tradições religiosas autênticas são reflexos diferentes da mesma verdade, e talvez igualmente preciosas. Mas as pessoas não se dão conta disso, porque cada uma vive apenas uma única dessas tradições e só se apercebe das outras a partir do exterior.»
Ascética, considerava urgente «uma santidade nova», «sem precedente». Escreveu: «O mundo tem necessidade de santos que tenham génio, tal como uma cidade com peste tem necessidade de médicos.» O mesmo é dizer que a força da gravidade (natureza) precisa de ser atraída, elevada e transfigurada pela luz da graça, do sobrenatural, da caridade.
Sejamos agnósticos, crentes ou ateus, penetrar em «A Gravidade e a Graça» não é tarefa fácil. Em primeiro lugar, porque a mística sabe já não ter tempo para se dar ao luxo de ser didáctica. Depois, porque a filósofa parece bem mais vocacionada para se questionar do que para dar por adquirido o já pensado. Finalmente, porque a sede de Absoluto acaba por se tornar incompatível com a complacência em relação aos seus potenciais leitores: as palavras de Simone Weil talvez sejam dirigidas, em última instância, a si própria ou a Alguém que erige como único e inesgotável tema de meditação. Por vezes, nem parece falar para nós, mas apenas escutar e dar voz ao seu incessante e intenso monólogo interior. No entanto, se não a entendermos à primeira abordagem, a «culpa» não pode ser displicentemente atribuída a esta criadora, sempre lúcida e por vezes genial, de textos tão fulgurantes como «L’Attente de Dieu», «La Conaissance Surnaturelle» ou «L’Enracinement».
Desafios à preguiça mental: «Entre dois homens que não possuem a experiência de Deus, aquele que o nega talvez seja o que está mais próximo dele. O falso Deus que se parece em tudo com o verdadeiro, excepto que não lhe tocamos, impede-nos de alguma vez acedermos ao verdadeiro.» (…) «A religião, enquanto fonte de consolo, constitui um obstáculo à verdadeira fé: neste sentido, o ateísmo constitui uma purificação. Devo ser ateia com a parte de mim mesma que não é feita para Deus. Entre os homens cuja parte sobrenatural não está desperta, os ateus têm razão e os crentes não.» («O Ateísmo Purificador», em «A Gravidade e a Graça»).
Raciocínios inesperados, incómodos, mesmo paradoxais? Talvez, mas não será isso o mais perturbador nestes aforismos sempre abertos para o Desconhecido. Parafraseando Mário Cesariny de Vasconcelos, «o místico não pode ajudar-vos a morrer.» Nem sequer a viver…
Simone Weil, «A Gravidade e a Graça», Relógio d’Água, 182 pag., 11.88 €