António Rego Chaves
Impossível ler este «documento humano» de António Nobre sem centrarmos a atenção nas cartas que dirigiu a Alberto de Oliveira. E sem nos perguntarmos em que medida o «Só», esse «livro mais triste que há em Portugal», poderá entender-se sem a catástrofe sentimental que vitimou o nosso autodenominado «português antigo e de colhão» exilado em Paris desde 1890, no Bairro Latino, a fim de obter o que a Universidade de Coimbra nunca se dignou conceder-lhe, uma muito prosaica licenciatura em Direito.
Guilherme de Castilho, o incansável estudioso da vida e obra de António Nobre, seu «fantasma de cabeceira», e organizador da «Correspondência», deixou bem explícito o que, a seu ver, gerou o melhor da poesia de António Nobre, decerto escrito em Paris. Opina o notável ensaísta que «ler estas cartas sem conhecer o ‘Só’ seria ter uma visão incompleta de uma unidade, conhecer uma causa que só verdadeiramente interessou pelo efeito que produziu». Em contrapartida, ler o «Só» sem conhecer as cartas seria correr o risco de ignorar que «o ‘Só’ é a tradução de uma crise psicológica, a erupção veemente de um desequilíbrio gerado pela oposição irredutível entre o que, de uma maneira simplista, poderemos chamar o mundo da realidade e o mundo do sonho».
Que sonho(s), que realidade(s)? O sonho de uma «amizade amorosa» e a realidade da ruptura sem reatamento possível; o sonho da mítica Paris e a realidade da falta de dinheiro, do frio e da «cambada» humanóide com que depara; o sonho de eleger uma nova pátria e a realidade «da saudade cada vez mais exacerbada» do «paraíso perdido» onde julga ter sido feliz na infância, na adolescência e nos primeiros anos de adulto.
Lemos e relemos de ponta a ponta estes textos, vamos decifrando cada entrelinha e não há que fugir na direcção de uma qualquer «Purinha» Margarida de Lucena: se por alguém se apaixonou o poeta, a partir dos 21 anos, foi por Alberto de Oliveira, que então contava apenas 15. «Amizade amorosa»? Seja. Mas o António Nobre capaz de fazer corar de indignação os vigilantes fiscais de costumes está todo aqui, nestas duas contraditórias confissões: «Mulher e filhos! A Mulherzinha/Tão loira e alegre, Jesus! Jesus!/E, em nove meses, vê-la choquinha/ Como uma pomba, dar outra à luz» («Canção da Felicidade»); «Eu não consinto que a tua pilinha-morango toque nem de leve o vergalho deste paquete» (Carta a Alberto de Oliveira). Dêem-lhes as academias as voltas que lhes derem, ambos os gritos de alma saíram da pena do autor do «Só»…
António Nobre, que a si próprio se considerou «engenheiro de ideais», não era homem de meias-tintas. Leia-se apenas este primeiro anúncio do rompimento com Alberto de Oliveira, escrito em 29 de Março de 1891: «E sabes o que resolvi? O seguinte: acabar com ‘isto’. Reflecti muito. Impossível compreenderes o que eu quero. Impossível.» (…) «Vontadinha tens tu, faço-te essa justiça, mas coitado! não chegas lá. Não me compreendes, numa palavra.» Convenhamos, não há «amizade amorosa» que assim termine: só o apaixonado ousa ir tão longe na exigência de fusão integral entre duas pessoas e no sarcasmo que faz suceder ao desencantamento com o alvo da sua paixão.
O poeta chegara a Paris, cheio de ilusões, depois de uma penosa passagem pela Faculdade de Direito de Coimbra, onde o seu aspecto, os seus modos, a sua altivez, em nada tinham agradado aos doutos lentes que lhe poderiam dar o «canudo». Resultado, dois anos seguidos de «chumbos». Raul Brandão desatará magistralmente o verdadeiro nó do problema: «Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior. Ser diferente – eis o delito que a ‘quadrilha’ não poderá nunca perdoar-lhe; a sua superioridade, é bem certo ter-lhe passado despercebida; mas a singularidade do estranho moço, quem podia deixar de a notar em toda a Coimbra desse tempo? Quem não conhecia a encantadora lenda que à sua volta os amigos mais fiéis iam tecendo, a sua atitude de superioridade desdenhosa diante da pequenez dos homens e do meio, o desprezo instintivo por todos os formalismos convencionais, a bizarra loucura que era o timbre mais saliente da sua conduta social?»
Escreve Guilherme de Castilho: «Em breve Paris é para ele apenas uma terra de exílio, e nada mais. Este, seja onde for, para um temperamento como o de António Nobre, é sempre fundamentalmente o mesmo em toda a parte.» (…) «Olha e só vê ‘o espectáculo das vanglórias, das ambições, das vaidades, das corrupções que deslustram a vida’.» E é «com «o coração desfeito em tiras» que António Nobre, descrente de tudo e de todos, excepto da sua querida Lusitânia, escreve a maioria dos poemas do «Só». Contudo, a recepção inicial da primeira edição do livro em Portugal, a partir de Abril de 1892, embora positiva por parte de Oliveira Martins, Alberto de Oliveira, Raul Brandão, Júlio Brandão ou Silva Pinto, é globalmente negativa, até ofensiva, na Imprensa: Guerra Junqueiro, Moniz Barreto, Abel Botelho, Pinheiro Chagas e muitos outros não poupam o poeta, que comentará, amargurado: «Não devo ao meu país glorioso e lindo senão o acaso do nascimento. E com o parto do ‘Só’ mais uma vez vi que a literatura portuguesa é uma Costa de África de penas, lutas, horrores.»
Em Fevereiro de 1895, «O Século» noticia: «Terminou há dias o seu curso de Direito na Universidade de Paris o nosso bom amigo e eminente poeta António Nobre. O nosso distinto compatriota, que há dois anos tinha já obtido o grau de bacharel, obteve agora o de ‘licencié’.» Sublinha Guilherme de Castilho: «Aquilo que Coimbra lhe houvera negado, a Sorbonne, não menos sábia mas certamente menos exigente no que toca à vida privada dos seus escolares, lho concede com generosidade.» Restam apenas cinco anos de vida ao poeta, que serão cinco anos de calvário em busca de cura para a tuberculose e as hemoptises que começarão a atormentá-lo. Nas montanhas da Suiça, numa longa viagem por mar até à América do Norte, na Ilha da Madeira. Tudo em vão. A 18 de Março de 1900, morre na Foz, abraçado a seu irmão, Augusto Nobre.
«António Nobre em Paris, Só – Correspondência», Introdução e notas de Fernando Carmino Marques, Edições Caixotim, 2005, 183 páginas