Nós e a Europa
António Rego Chaves
Estamos quase todos fartos de ouvir falar da Europa. Afinal nascemos aqui – na Europa –, crescemos para aqui – na Europa – e decerto tudo se conjuga para que morramos por aqui – na Europa. Quando nos disseram que entrámos na Europa julgámos que era de rir a bom rir: pois se nela estávamos, como entrarmos aonde já vivíamos? Só depois percebemos que o caso não era para graças: era negócio de monta, em que recebíamos agora e pagávamos depois com alto juro, nós, os nossos filhos e os nossos netos.
O conceito de «Europa», porém, tal como hoje o entendemos, é relativamente recente, tendo sido desconhecido durante quase toda a nossa Idade Média. Isto apesar da célebre Carta de Bruges, na qual o Infante D. Pedro propunha ao rei D. Duarte, entre muitas outras coisas, que reformasse a nossa Universidade, apontando-lhe como modelos a de Paris ou a de Oxford. Mas tratava-se da voz isolada de um isolado príncipe culto e viajado, que tinha visto muito para além da Península Ibérica, entre 1424 e 1428, na Hungria, na Itália, em Inglaterra, na Flandres. Como acentuou Veríssimo Serrão, a sua visão quanto ao bom ordenamento da função pública, à necessidade de fazer justiça e de atender às justas reclamações dos povos, de se proceder ao conserto de fortalezas e à guarda dos armazéns revelava o homem de experiência que procurou captar na Europa formas de actuação política para «proveito e defesa» de Portugal. O seu destino estava traçado: como se sabe, acabaria trucidado em Alfarrobeira.
«A Europa segundo Portugal – Ideias de Europa na Cultura Portuguesa Século a Século», obra colectiva a que não se poderia exigir unanimidade na concepção do tema, mas a que falta talvez uma desejável coerência das várias abordagens dos seus autores, apesar da coordenação de José Eduardo Franco e Pedro Calafate, ajuda-nos a entender as razões históricas das nossas perplexidades quando nos falam de Europa. Desde a Idade Média até à primeira década do século XXI ouvimos as vozes dos intelectuais portugueses explicando-nos a nossa inserção no continente de que fazemos parte, inicialmente na qualidade de cristãos, depois enquanto cidadãos.
Diz José Eduardo Franco na sua síntese: «O termo e o conceito de ‘Europa’ a ele associado afirmam-se na cultura portuguesa do século XVI em concorrência, paulatinamente triunfante, com o conceito medieval de ‘Cristandade’. A Europa começa de facto a conquistar cidadania cultural, povoando as letras lusitanas, precisamente no século de Quinhentos. O Portugal cultural do século XVI pode ser considerado como o século do nascimento da Europa. Antes a sua existência era exígua, esparsa, não passando de um mero conceito geográfico ocasionalmente referido em tratados, correspondência e crónicas.» (…) «Até ao dealbar da Época Moderna, não obstante todos os conflitos internos (os cismas, os papas e antipapas, as guerras intestinas entre reinos cristãos e a luta pelo poder entre a esfera espiritual e temporal), a Cristandade, fiel ao rito latino romano, reconhecia a existência de uma autoridade espiritual única, de uma Igreja única monitorizada pela autoridade papal. A modernidade vai rasgar este quadro de unidade de fé, de doutrina e de autoridade.»
Lucien Febvre: «Porque é que nos textos ainda pouco numerosos, mesmo assim bastante frequentes, encontramos cada vez mais a palavra Europa? Correndo o risco de escandalizar, sinto-me tentado a responder, porque Colombo descobriu a América. Sim! Esta descoberta preocupou muito os espíritos. O século XVI é o século da Reforma, do grande corte, do cisma, a túnica sem costura rasgada em duas. Deixa de ser possível aplicar esta velha noção de cristandade unitariamente à totalidade das populações do Ocidente que professam o Cristianismo. Cristandade? Rompeu-se.»
No século XIX os tempos estão maduros, a relação entre nós e a Europa diversifica-se: «a Europa de Antero não é a mesma de Oliveira Martins, de João Andrade Corvo ou de Eça de Queiroz, como também não será a Europa de Garrett ou de Herculano, pois os nossos intelectuais souberam olhar para a Europa na sua grandeza e também na sua miséria, talvez com uma única excepção: a do Antero dos anos 1870» (Pedro Calafate).
Conclui Guilherme d’Oliveira Martins, no Posfácio que escreveu para este livro: «Antero, Eça ou Oliveira Martins usaram o sentido crítico para ultrapassar o atraso, certos de que o país teria de se organizar, de trabalhar melhor, de pensar mais. Desde as ‘Causas da Decadência [dos Povos Peninsulares’] a ‘Os Maias’, passando pelo ‘Portugal Contemporâneo’, do que se tratava era de pôr Portugal ao ritmo da Europa. Daí a recordação do Infante D. Pedro, das Sete Partidas, símbolo da atitude de contrariar o atraso com sentido crítico, com organização, com vontade, com trabalho e com recusa do parasitismo e da desistência. Fiéis ao sentimento e à razão, à história e ao futuro, cientes da fecundidade de uma ideia aberta de auto-instituição da sociedade, ligando democracia e Europa, poderemos olhar para vante construtivamente. [António] Sérgio, [Raúl] Proença e [Jaime] Cortesão estavam imbuídos desse anseio. Europa e liberdade devem estar ligadas – sendo o humanismo universalista o horizonte desse desígnio.»
A expectativa de um novo Infante D. Pedro é hoje pertinente como nunca; esperemos que o do futuro, também ele «contemplativo, cavalheiresco, benigno, prudente, sábio», não acabe noutra Batalha de Alfarrobeira…
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Sumário: Prefácio (Maria Manuel Tavares Ribeiro); Introdução (José Eduardo Franco); Idade Média (Luís Machado de Abreu); Século XVI (José Eduardo Franco); Século XVII (Miguel Real e Pedro Calafate); Século XVIII (Pedro Calafate); Século XIX (Pedro Calafate); Século XX (Carlos Leone); Século XXI (Carlos Leone); Posfácio – Ideias de Europa e Portugal (Guilherme d’Oliveira Martins).
«A Europa Segundo Portugal», coordenação de José Eduardo Franco e Pedro Calafate, Gradiva, 2012, 255 páginas