Romance «existencialista»?
António Rego Chaves
Vergílio Ferreira tinha trinta e um anos quando escreveu, em 1947, este romance com epígrafe de Hegel. Reza assim a frase do filósofo alemão com que resolveu sinalizar esta obra que só postumamente, em 2010, seria publicada: «É na vida de um povo que o conceito de actualização da razão consciente tem a sua perfeita realidade.» Aplicada à Prússia, em finais do século XVIII ou nos princípios do XIX, a asserção pouco sentido faria. Transplantada para o Portugal de Salazar, dois anos depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, era mesmo absurda. Que sentido poderia fazer?
Não se esqueça o senso histórico de Hegel: ele foi «não só o filósofo que mais profunda e adequada compreensão teve na Alemanha da essência da Revolução Francesa mas, além disso, o único pensador alemão do período que se ocupou seriamente dos problemas da Revolução Industrial ocorrida em Inglaterra e o único que então relacionou os problemas da economia clássica inglesa com os problemas da filosofia da dialéctica» (Lukács).
No «Diário Inédito» do espólio do escritor podem ler-se as seguintes considerações: «Évora, 29 de Janeiro – Aos tombos com a ‘Fenomenologia do Espírito’ de Hegel. Chiça, que aquilo é duro. Já li Descartes, Espinosa, Comte, e por aí adiante até Bergson e Sartre. Pois nada como este cavalheiro. Diante dos olhos – um muro. Tanto mais que Hegel me acusou logo de eu estar na disposição de ler só o Prefácio e meia dúzia de linhas do texto. Enganas-te, amigo. Há-de ir tudo, dê para onde der. São setecentas páginas cerradas sem um buraco para se respirar. Mas hão-de ir de cabo a rabo. E o que for se verá.» Pormenores não despiciendos: O romance «Promessa» data de 47 – e estas anotações surgem em 49; por outro lado, a 21 de Março deste ano, anota: «Pausa na ‘Fenomenologia do Espírito’.»
Como salientam os autores da introdução, Fernanda Irene Fonseca e Hélder Godinho, «é ‘Promessa’ que marca a ruptura de Vergílio Ferreira com o romance neo-realista e a transição para o romance de temática filosófica e existencial.» (Publicara já os romances «O Caminho Fica Longe» (1943), «Onde tudo Foi Morrendo» (1944) e «Vagão «’J’» (1946), a que se seguiria «Mudança» (1949). Adiantam: «É o seu primeiro romance de ‘ideias’, para que escolheu uma epígrafe de Hegel, reveladora do influxo das leituras de obras filosóficas que tinha começado a fazer nessa época.» A ilação é no mínimo discutível, dada a tardia leitura da «Fenomenologia do Espírito»…
O tradutor desta obra de Hegel para francês, Jean Hippolyte, tornara-se responsável por uma «modernização» do filósofo em sentido existencialista – o que decerto agradou ao romancista, embora declarasse com todas as letras, a 24 de Março de 1949: «Eu não sou existencialista.» E, sendo já então «clássica» a oposição entre Hegel, expoente máximo da filosofia como sistema, e Kierkegaard, referência fundamental do existencialismo, declararia Vergílio Ferreira em 1973: «Sou genericamente um hegeliano, como praticamente sempre fui. Passei de Hegel ao existencialismo fundamentalmente através da ‘consciência infeliz’, que é a consciência das contradições, e genericamente não saí ainda de lá.» Note-se que o tema da «consciência infeliz», desenvolvido na «Fenomenologia do Espírito», já se anunciava desde os primeiros escritos teológicos de juventude de Hegel…
Prosseguem os apresentadores: «O conhecimento de ‘Promessa’ permite aos leitores de Vergílio Ferreira captar um momento de experimentação e inovação que constitui um primeiro passo em direcção ao que virá a ser o romance-problema vergiliano. Depois, com ‘Mudança’ e sobretudo com ‘Aparição’, vai apurar este tipo de romance, de que ‘Promessa’ é uma primeira tentativa incompleta. Porque não tinha ainda encontrado o tom, o vigor emotivo e poético da indagação filosófica que se tornarão marca inconfundível dos seus romances (e dos seus ensaios poéticos).»
Consideram também os autores da introdução que «a extensão dos diálogos é sem dúvida um dos pontos fracos de ‘Promessa’», lamentando as «longas discussões de ideias, com muitas exposições e demonstrações». Ora, se este livro pode assumir hoje alguma importância é a nosso ver precisamente porque, sendo «datado», se apresenta como um documento das ideologias em confronto na época em que foi escrito. Quanto ao alegado «excesso» de ideias, tão característico de qualquer romance-ensaio, não vemos como considerá-lo um «defeito» da obra. Torna-a por vezes pouco fluida? Seja. Mas desde quando se prefere a fluidez ao debate ideológico, filosófico, político? Em boa verdade, percorrem-se hoje – e desde sempre, diga-se de passagem – milhares e milhares de páginas de inúmeros romances sem que deles possamos extrair uma ideia, uma questão que possa ser objecto de tematização filosófica, uma perplexidade, sequer. Como não louvar quem exige do leitor algum esforço, algum raciocínio, algum «sacrifício» mental?
Resta saber por que motivo(s) Vergílio Ferreira não publicou este livro em vida, apesar de decerto não lhe terem faltado oportunidades para o fazer. Consciência aguda da imaturidade da obra? Receio de uma crítica literária hostil? Previsão de problemas com a censura governamental, agravados pela circunstância de o autor ser professor liceal e funcionário do Estado? Tudo seria possível, mesmo a falta de um editor disposto a arriscar na publicação de um autor que, não sendo já neo-realista, não representava qualquer alternativa política consistente à ideologia «progressista» então veiculada por amplos sectores da oposição democrática portuguesa.
Ser «existencialista» em Portugal, ainda que vagamente hegeliano, nos meados do século XX, mesmo sem procurar conciliar essa corrente filosófica com o pensamento de Marx e, nesses tempos difíceis, associar individualismo e um ideal solidário, era obra. Palavra de Eduardo Lourenço: «… a heterodoxia não é fácil. Serviço divino a poucos cometido, paga-o a moeda que os deuses amam: a amargura e a solidão.»
Vergílio Ferreira, «Promessa, Quetzal, 2010, 279 páginas