Da moral à política, em linha recta
António Rego Chaves
Não é esta a primeira vez – e espero que não seja a última – que fazemos a recensão do tema de capa de um número do prestigiado «Le Magazine Littéraire». Isso talvez conduza o leitor a perguntar por que motivo nos ocupamos de uma revista francesa e não de mensários portugueses com idêntica qualidade: a resposta é das mais simples – porque não existem.
Haverá culpados? Culpados somos quase todos nós, evidentemente, que não somos capazes de viabilizar, pela compra habitual de uma revista de carácter cultural, a sua sobrevivência, ainda que a curto ou médio prazo. Uns mais culpados que outros, mesmo se falarmos apenas daqueles para quem a questão do poder de compra não se põe: uns porque preferem outras leituras, outros porque nada lêem. Estarão todos no seu pleníssimo direito mas, neste contexto, digamos que têm a cultura que cultivam...
Do sumário deste número destacamos, para além do tema de capa, «A Moral»: uma longa entrevista com Dominique Fernandez; um ensaio sobre Léon Chestov; um diálogo entre Will Self e Martin Amis sobre as relações entre a escrita e a política; páginas de crítica consagradas a uma biografia de Malaparte por Maurizio Serra, a um novo romance de Philippe Sollers com o título «Trésor d’amour», ao «Caim» de José Saramago, ao «Parménides» de Martin Heidegger, à «Ilíada», a Alexandre Kojève, a Theodor Adorno, a Lewis Carroll, a René Girard. Será que haveria em Portugal um número suficiente de pessoas interessadas em comprar regularmente uma revista com tal espécie de conteúdos, ainda que mais voltada para autores portugueses? Talvez sim, mas pertenceriam elas ao número das que a poderiam comprar, ou às multidões de jovens e nada jovens licenciados que se encontram por esse país fora à procura de um salário mínimo que lhes garanta a sobrevivência e pagar as suas dívidas?
Passemos à moral e, em linha recta, à política. À moral que, como Saint-Just anotou, é inseparável, seja da virtude, seja do terror. «E que querem aqueles que não querem nem a virtude nem o terror?» – interrogava. «A corrupção» – respondia. «A questão não deixa de ser actual» – comenta a historiadora francesa Sophie Wahnich. Nós, por cá, não diremos o mesmo?
Escreve Maxime Rovere: «Quando o cristianismo fez a sua aparição, a obediência à lei divina herdada do judaísmo assumiu um novo significado: a moral passou a estar orientada para um duplo destino, ao mesmo tempo íntimo e sobrenatural. Não se tratava apenas de assegurar para cada um a sua salvação depois da morte.» (…) «Agostinho traçou uma fronteira entre a cidade terrestre (o espaço do quotidiano, das suas paixões e das preocupações consigo próprio) e a cidade celeste (comunidade daqueles que vivem de acordo com a lei de Deus). Esta divisão marcou o nascimento da consciência moral.» Kant, o grande Kant, encontra mais tarde a fórmula mágica, exigindo que cada ser humano jamais fosse tratado como uma coisa. Legar-nos-á a lei moral, aliás única: «Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como meio.»
O mesmo ensaísta põe o dedo na ferida: «A questão central colocada pelo século XX poderia ser formulada como se segue: os indivíduos devem sujeitar as suas inclinações em proveito da maioria ou devem elas ser alvo de um respeito incondicional?» Talvez uma resposta radical a esta persistente interrogação possa ser encontrada num texto antiquíssimo, os Actos dos Apóstolos (2, 44-45): «Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um.»
Os filósofos gregos, como sublinha Pierre-Marie Morel, tinham já acentuado que o bem e o mal dependem antes de tudo dos indivíduos, ou seja, que «o bem e o mal derivam de uma maneira de viver e de agir fundada na razão e na responsabilidade pessoal». Ninguém nasce «bom» ou «mau»: a virtude conquista-se, exige esforço, aprendizagem, determinação. Agostinho de Hipona acrescentará: «Se amas, é impossível que não faças o bem.» (…) «Ama, e faz o que quiseres.» Mas adverte: «Dois amores fizeram duas cidades: o amor de si até ao desprezo de Deus fez a cidade terrestre; o amor de Deus até ao desprezo de si fez a cidade celeste.»
O dossier que vimos seguindo insere textos acerca d’ «A Epopeia de Gilgamesh», de Zaratustra (que teria vivido no actual território do Afeganistão), do Egipto Antigo, da Bíblia hebraica, dos deuses e filósofos gregos, de Cícero, de Santo Agostinho, de Râzî (médico e pensador persa do século IX), do clássico «Morais do Grande Século» de Paul Bénichou, de Madame de Lafayette («A Princesa de Clèves»), de Chamfort, Vauvenargues, Kant, Robespierre, Henry James, Hannah Arendt, bem como do feminismo e da «moral dos machos» e das éticas da filosofia analítica. Trata-se de um conjunto deveras imponente, mas que não pode fazer-nos perder de vista, não obstante a sua riqueza, o que distingue o melhor da cultura europeia: um imperativo de associar culto da vida interior e cidadania, pensamento solitário e prática solidária, espiritualidade e luta pela igualdade de direitos. Por muito profunda que seja a nossa convicção de que vivemos numa civilização apodrecida – e essa convicção é, de facto, hoje e neste espaço geográfico que habitamos, cada vez mais profunda –, nunca poderemos esquecer que durante séculos e séculos inúmeros intelectuais do Velho Continente se bateram com denodo por não separar a política da moral. Essa terá sido, porventura, a sua maior grandeza – e é decerto a irrecusável herança que orgulhosamente nos cabe receber neste Janeiro de 2011, que para tantos é um tempo de indigência.
Le Magazine Littéraire, «La Morale», Janeiro de 2011, 106 páginas