Um humanismo marxista (Bento de Jesus Caraça)

António Rego Chaves

Bento de Jesus Caraça (1901-1948) não foi apenas o eminente professor catedrático do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras a quem se ficaram a dever obras como «Conceitos Fundamentais da Matemática», uma activa participação na Universidade Popular Portuguesa ou na Biblioteca Cosmos. Revelou-se intrépido militante político, impulsionando a Liga Portuguesa Contra a Guerra e o Fascismo, o Socorro Vermelho Internacional e o Movimento de Unidade Nacional Antifascista (MUNAF). No fim da 2.ª Guerra Mundial era vice-presidente da Comissão Central do Movimento de Unidade Democrática (MUD), tendo sido por duas vezes encarcerado pela PIDE. Em Setembro de 1946 será acusado de difamar o Estado Novo, pelo que se verá expulso da docência universitária.

Não seria, aliás, o único catedrático vítima da ditadura por ousar classificar como antidemocrático o regime então vigente, na sequência da rejeição da admissão de Portugal na ONU. Também Mário Azevedo Gomes, do Instituto Superior de Agronomia, foi afastado do ensino superior. Quanto à tristemente célebre «purga» na corporação universitária, que envolveu outros vinte prestigiados docentes desafectos ao regime salazarista, só surgiria em 1947.

Os ensaios de Bento de Jesus Caraça estiveram longe de se confinar às áreas científicas que tão bem dominava. Consagrou notáveis textos a temas pedagógicos e políticos, bem como a Berkeley, Rabindranath Tagore, Alexis Carrel, Magalhães-Vilhena, Romain Rolland e outros intelectuais. E proferiu, em 25 de Maio de 1933, a conferência de que hoje nos ocupamos, «A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso Tempo».

«Hitler tomara, havia meses, o Poder na Alemanha; agitavam-se as mais variadas correntes dentro e fora do Reich; a instabilidade geral era manifesta; tudo isto criara um ambiente de expectativa e ansiedade» – explica o autor. Sobre as ilusões que alguns então consideravam perdidas, salienta: «As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir, perdidos são aqueles períodos da história em que os melhores, gastos e cansados, se retiram da luta, sem enxergarem no horizonte nada a que se entreguem». (…) Benditas as ilusões, a adesão firme e total a qualquer coisa de grande que nos ultrapassa e nos requer. Sem ilusão, nada de sublime teria sido realizado, nem a catedral de Estrasburgo, nem as sinfonias de Beethoven. Nem a obra imortal de Galileu.»

Avisa: «Se não receio o erro, é só porque estou sempre pronto a corrigi-lo.» Condena «o cortejo sinistro do domínio do indivíduo sobre o grupo», alerta para que «o mais capaz só subsidiariamente põe o seu esforço ao serviço do agregado» e sustenta que «a sua primeira ideia é servir-se dessa capacidade maior para seu interesse próprio.» Conclui: «Aqui reside o grande drama em que, de todos os tempos, se tem debatido a Humanidade – condenada a só poder evolucionar e progredir sob a acção vivificadora e fecunda de alguns dos seus indivíduos, ela vê-se ao mesmo tempo impotente para impedir que esses indivíduos se transformem em seus verdugos.»

Recordou Veríssimo Serrão: «A minha geração de Coimbra admirava a capacidade de raciocínio e a clareza pedagógica do Doutor Bento de Jesus Caraça.» (…) «Mas, pela nossa formação aliadófila, no grande apego ao tempo votado ao heroísmo da Grã-Bretanha, éramos contrários ao referido mestre, pela cega divinização que ele fazia, nos seus escritos, do regime da União Soviética, que já então sabíamos não passar de uma ditadura semeada de terror, em nome do proletariado.» Não diz a gota com a perdigota: quem se referiu a indivíduos que se transformam em «verdugos» não era decerto um estalinista, a menos que ignorasse a História da URSS.

A matriz marxista do pensamento de Bento de Jesus Caraça é, no entanto, indiscutível. Diz-nos: «A civilização de base capitalista tornou inoperantes os princípios de liberdade individual e de igualdade, para não falar já no da fraternidade que só por sarcasmo se pode pretender que esteja incluído hoje entre as ideias dominantes da governação.» (…) «O homem escravo da coisa – eis a grande condenação, no campo moral, do regime social contemporâneo». (…) «Os males não estão na máquina mas na desigualdade de distribuição dos benefícios que ela produz. O mal não está em que se reduza de 100 a 5 o número de horas necessário para a fabricação de dado produto, mas sim em que o benefício correspondente seja reservado a uma minoria, escravizando a essa má distribuição a maioria. Quer dizer, o problema fundamental é, não um problema de técnica, mas um problema de moral social. E não é a técnicos que se pode entregar a sua solução. É a homens.» O autor, irónico, transcreve a seguir esta singela passagem de uma pregação de 1933 do melífluo Frei Tomás de Santa Comba, o «Dr. Oliveira Salazar»: «Adulterámos o conceito de riqueza, fizemos dela uma categoria independente que nada tem a ver com o interesse colectivo nem com a moral e supusemos que podia ser finalidade dos indivíduos, dos Estados ou das Nações, amontoar bens sem utilidade social, sem regras de justiça na sua aquisição e no seu uso.»

Eis o cidadão culto que Bento de Jesus Caraça desejava ver nascer e crescer: «um homem que tem a consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence; que tem a consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano; que faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.» (…) «Condição indispensável para que o homem possa trilhar a senda da cultura – que ele seja economicamente independente. Consequência – o problema económico é, de todos os problemas sociais, aquele que tem de ser resolvido em primeiro lugar.» (…) «O problema central posto às gerações de hoje é despertar a alma colectiva das massas.» A fidelidade a este genuíno humanismo marxista custar-lhe-ia a liberdade e poria termo à sua brilhante carreira de professor universitário.

Bento de Jesus Caraça, «A Cultura Integral do Indivíduo», Seara Nova, 3.ª edição, 1941, 49 páginas