António Rego Chaves
Nove artigos inéditos, a par de quinze já publicados pela revista, preenchem este número «fora-de-série» do «Magazine Littéraire» consagrado a Martin Heidegger por ocasião do 30.º aniversário da sua morte (26 de Maio de 1976). Destaque especial merecem, entre os novos textos, os ensaios assinados por Peter Sloterdijk («A Política de Heidegger») e por David Rabouin («Heidegger e o Nazismo»), que nos auxiliam a compreender alguns dos aspectos mais discutidos da vida e obra do filósofo, ainda que o primeiro dos inéditos apenas reproduza – sem justificação editorial possível – a parte inicial de uma conferência proferida pelo autor da «Crítica da Razão Cínica» em 2004.
Subscrevemos sem reservas a afirmação segundo a qual Martin Heidegger foi «o maior filósofo do século XX». Dito isto, tal como fez Emmanuel Faye (responsável por «Heidegger: a Introdução do Nazismo na Filosofia» (2005), obra de quase 600 páginas exaustivamente documentada), não se pode deixar de estranhar que os arquivos do antigo reitor de Friburgo estejam em boa parte, até 2026, vedados aos investigadores, por imposição de seu filho Hermann. Novos elementos, no entanto, foram recentemente revelados com a publicação de uma antologia de cartas dirigidas pelo pensador a sua mulher, Elfride. Segundo Faye, detecta-se nelas «a radicalidade do anti-semitismo e do racismo que habitam Heidegger desde 1910». Basta transcrever uma sua frase, datada de 18 de Outubro de 1916: «A judaização da nossa cultura e das universidades é de facto assustadora e penso que a raça alemã deveria encontrar suficiente força interior para atingir o seu apogeu.» Haveria, para o exacerbado nacionalista alemão, alguma solução à vista? Eis a sua resposta: «Reconheço que é cada vez mais urgente a necessidade de um Führer.»
Como sublinhou Roger-Pol Droit por ocasião da publicação do demolidor estudo de Emmanuel Faye, «tornou-se impossível separar o pensamento de Heidegger e o seu decidido empenhamento na acção política do III Reich. Falar de acidente ou de desvario torna-se risível e enganoso quando se verifica como o ‘mestre’ expõe ele próprio, longa e explicitamente, a fusão das suas intuições filosóficas maiores e da ideologia nazi. Heidegger, com efeito, não se contenta com rejeitar o humanismo, com querer banir a universalidade da razão, com destruir os constrangimentos da lei moral em proveito de uma decisão que não se fundamenta senão em si própria. Vê no uso constante de Descartes, quer dizer, da dúvida racional e da referência ao sujeito pensante, ‘um sinal sem equívoco da perda de pensamento e da irresponsabilidade’ que conduzem a uma ‘decadência espiritual dos estudantes’».
Se restar alguma dúvida acerca do racismo pró-nazi e do oportunismo de Heidegger, aponte-se este exemplo esclarecedor: o célebre curso sobre Nietzsche, começado em 1936, foi amplamente revisto pelo professor em 1961, ao ser traduzido para francês, sendo a versão disponível nesta língua crítica em relação a certas correntes racistas, ao contrário do que se verificava no texto original. E a verdade é que o pensador morreu sem ter pronunciado uma palavra de condenação do genocídio dos judeus, uma palavra de repúdio do hitlerismo. Não obstante estes factos, ainda há quem se atreva a sustentar – nomeadamente entre os «jovens heideggerianos» – que «quando não se percebe nada de Heidegger, se ataca o seu nazismo»; ou que ele «nunca apoiou os movimentos anti-semitas»; ou, ainda, que a sua filosofia é «estritamente incompatível com qualquer doutrina racista». Este talvez seja hoje, de facto, o busílis da questão.
No texto acima referido, David Rabouin não foge à referida temática, ao considerar que «o problema das relações de Heidegger com o nazismo não reside tanto no estabelecimento dos factos como na sua interpretação e nos seu laços com a obra do filósofo. Uma dificuldade que é mantida pelo silêncio de Heidegger.» Caso assim seja, a interrogação a fazer seria, a nosso ver, a seguinte: «que há da ideologia nazi na obra em apreço?» Como poderíamos também perguntar: «que há de totalitário na obra de Platão e como se articula ela com a tirania em Siracusa?» Ou ainda: «que há com a explícita aceitação do esclavagismo na obra de Aristóteles?» Só que Platão e Aristóteles morreram há mais de dois milénios, ao passo que Heidegger desapareceu em 1976. Isto poderá significar que nos tornámos insensíveis a atrocidades de outros tempos, mas que muitos de nós continuamos a manter viva uma repulsa visceral em relação ao nazismo. Digam o que disserem os nada ingénuos «jovens heideggerianos».
Os factos são incontroversos. Heidegger foi nomeado reitor da Universidade de Friburgo em 1933 e aderiu depois ao Partido Nacional-Socialista. Aliás, já em 1927, no parágrafo 74 de «Ser e Tempo», identificara o «Dasein», não com o Homem universal, mas com «a comunidade de destino de um povo». Encarava – sem qualquer desmentido – o nazismo como a via adequada à Alemanha. E será que modificará alguma coisa em abono do catedrático recordar a sua inclassificável declaração de acordo com a qual a agricultura industrial seria, na sua essência, a mesma coisa do que «a fabricação de cadáveres nas câmaras de gás e nos campos de extermínio»?
Em Novembro de 1933, Heidegger fez publicar esta indelével profissão de fé que, na época, todos puderam ler: «O Führer, e só ele, é a realidade alemã de hoje e do futuro, tal como a sua lei.»; mas dialogaria de igual para igual com o pensamento poético de Hölderlin e conviveria com um René Char ou com um Paul Célan. Como terá sido possível a esse Heraclito do século XX descer tão baixo na incoerência? O filósofo judeu Emmanuel Levinas exclamaria, derrotado pela esmagadora evidência dos factos: «Não se pode apesar de tudo esquecer que «Sein und Zeit» é a obra filosófica mais importante do nosso século, e eu lamento isso.» Parafraseando o título de uma célebre peça de John Ford (‘Tis Pity she’s a Whore): é pena que ele tenha sido um nazi…
«Les collections du Magazine Littéraire», «Martin Heidegger – Les Chemins d’une Pensée», Março-Abril 2006, 98 páginas