António Rego Chaves
Há cerca de um ano, ao concluirmos a recensão da biografia de D. Carlos assinada pelo historiador Rui Ramos, formulávamos uma interrogação que, aliás, já continha implícita a resposta. Era ela: «Será possível falar do Regicídio sem evocar as afiadas aspas da ditadura de João Franco e a activa cumplicidade nela do monarca, seu patrocinador e sustentáculo?» A única resposta aceitável seria, como é evidente, um rotundo «não». Se alguma dúvida nos restasse, a leitura destas mais de 700 páginas do grande jornalista Rocha Martins (1879-1952) tê-la-ia desfeito de uma vez por todas. A ditadura de João Franco – ditadura, mesmo, sem as pudicas aspas utilizadas por Rui Ramos para amaciar tão execrável prática – foi hidra de duas cabeças, uma das quais era, claro está, a do Rei, tão apostado em pôr termo ao estéril «rotativismo» dos Regeneradores de Hintze Ribeiro e dos Progressistas de José Luciano de Castro quanto o seu último Presidente do Conselho. Dizia Ramalho: «Nenhum dos dois partidos a si mesmo se distinguia do outro, a não ser pelo nome do respectivo chefe, politicamente diferenciado, quando muito, pela ênfase pessoal de mandar para a mesa o Orçamento ou de pedir um copo de água aos contínuos.» A verdade é que, quando D. Carlos sentiu que o País estava prestes a resvalar para a República, apostou em João Franco, que já dera provas como deputado do Partido Regenerador, Ministro da Fazenda (1890), das Obras Públicas (1891-1892) e do Reino (1893-1897). Neste cargo tornara-se responsável pela chamada «lei dos anarquistas», de 13 de Fevereiro de 1896, ao abrigo da qual seriam perpetrados múltiplos atentados contra a liberdade dos cidadãos.
Dez anos depois faria público acto de contrição do «deslize»: «Pratiquei a ditadura, que é um crime constitucional que não beneficiou o País e de que estou arrependido. Nenhum homem público na posição em que estou deve recorrer a tal sistema.» Aliado ao Partido Progressista na Coligação Liberal, forma Governo em Maio de 1906, dando sinais de querer «caçar no terreno dos republicanos», nomeadamente ao garantir a liberdade de associação. Mas o problema dos adiantamentos à Casa Real e a «questão académica» da Primavera de 1907 acabariam por conduzi-lo à dissolução da Câmara dos Deputados, aliás ao arrepio da lei, porque levada a cabo sem prévia consulta do Conselho de Estado e sem marcação de data para as novas eleições. Tudo, claro está, com o activo apoio de Sua Majestade. Aproveitara até aí com sentido de oportunidade o tempo de que dispusera: regulamentara a cobrança de pequenas dívidas e as condições de despejo dos inquilinos, «concedera» o descanso semanal obrigatório, criara uma Caixa de Aposentações, aumentara os salários das Forças Armadas e facilitara aos seus membros o acesso à reforma. Mas, em Junho, tudo estragou, qual elefante em loja de louças, ao tornar pública a sua solução para a regularização dos adiantamentos à Casa Real. Seguiram-se manifestações de protesto, tumultos, dura repressão. Escreve Carlos Oliveira Pinto: «Estava quebrada a paz social e, a partir daí, na acção do Governo, as questões administrativas foram definitivamente subalternizadas pelos problemas de ordem pública. De centro administrativo, o Governo converteu-se em central de polícia. Adoptaram-se rigorosas medidas de excepção que (…) permitiam suster pela repressão as actividades dos adversários da ditadura, coarctando-lhes a liberdade individual e suspendendo os jornais que lhes eram afectos.» Não satisfeito, João Franco, após a intentona de 28 de Janeiro de 1908, faria aprovar por D. Carlos um decreto que punia com degredo para as colónias os incriminados por crimes políticos graves. Logo a seguir, em 1 de Fevereiro, o Rei e o Príncipe Real seriam assassinados no Terreiro do Paço...
Entre a dissolução do Parlamento e o Regicídio, viveu-se, pois, em pleno absolutismo, facto que o próprio monarca assumiu a 13 de Novembro de 1907, na entrevista que concedeu a Joseph Galtier, do importante diário francês «Temps», e que a publicação das suas cartas a João Franco, em 1924, só contribuiria para confirmar. Assim falou D. Carlos: «Nos últimos tempos da legislatura, a situação tornara-se impossível. Era necessário que a confusão, o ‘gâchis’ – não há outro termo – acabasse. Aquilo não podia durar. Íamos não sei para onde. Foi então que dei a Franco os meios de governar.» (…) «Precisava de uma vontade sem fraqueza para conduzir as minhas ideias a bom caminho. Franco foi o homem que eu desejava.» (…) «Estamos de acordo, plenamente de acordo. Trabalhamos juntos. Tem toda a minha confiança.» (…) «Faremos as eleições no momento oportuno, sem obedecer às imposições que nos dirigem. Teremos seguramente a maioria.» Repare-se no uso da primeira pessoa do plural: «Teremos». Se o soberano, «poder moderador» na monarquia constitucional, nunca poderia ser membro do Partido Regenerador Liberal e não falava no plural majestático, porquê o uso da primeira pessoa do plural, como quem navega em barco de que é proprietário e convidou um amigo sem barco para o acompanhar na viagem?
Comenta Rocha Martins: «Mesmo que não passasse duma vulgaridade, [D. Carlos] teria sacudido esse manto com que o pretendiam cobrir – o da obediência ao outro [João Franco]. Seu bisavô, D. Pedro IV, ainda regente no Brasil, escrevera ao conde dos Arcos – a quem diziam subordinado dando-lho por mentor – uma carta em que havia mais rompante do que gramática e na qual a dignidade de um príncipe repelia a atoarda de ser mandado por um vassalo. Pombal confessara, também, ser D. José quem o impulsionava, o atirava para a frente, ficando na sombra. Dom Carlos – apesar de rei constitucional – queria aparecer, mostrar que não era um vago manequim actuando sob uma vontade no fundo dos seus quartos, trabalhando os seus quadros, escrevendo os seus livros de ciência oceanográfica junto do seu laboratório.» Talvez por isso, foi ele, o suserano, assassinado – e não o seu fiel mas nada insubstituível vassalo João Franco.
Rocha Martins, «João Franco – O Último Cônsul de D. Carlos» / «O Regicídio», Bonecos Rebeldes, 2007, 324+411 páginas