António Rego Chaves
Foi grande filósofo e grande homem. Ou, mais importante, grande homem e, depois e só depois, grande filósofo? A cada um suas prioridades. Certo é que Vladimir Jankélévitch (1903-1985) era, sem dúvida, um Grande deste planeta, seja como cidadão, seja como pensador da ética, da metafísica, da música. E que, quando se impôs, militou, de armas na mão, pela liberdade. Dito de outra forma: as suas preocupações não se ficavam pela pura razão, recusava-se a separar palavras dos actos, ideias dos factos, teoria da prática.
Filho de judeus russos mas nascido em França (Bourges), estudante em Paris, discípulo de Bergson, a quem consagrará uma obra que se tornará de referência, professor universitário impedido de exercer a sua actividade após a ocupação alemã, em 1940, devido ao «Estatuto dos Judeus», lutará na Resistência até à Libertação, quatro anos depois. Desenvolve então um pensamento que se caracterizará, a um tempo, pela originalidade e pelo isolamento. Sem «família filosófica» que o acolhesse, nem existencialista nem marxista, nem estruturalista nem lacaniana, tão-pouco seguidor da fenomenologia, da filosofia analítica da linguagem, do pragmatismo, da hermenêutica, do construtivismo ou do desconstrucionismo, a si mesmo se considerava como um «apátrida filosófico». Assim viveu e assim morreu.
Nas palavras de Lucien Jerphagnon, «escapava, e muito naturalmente, a todos os géneros literários que se manifestavam em filosofia durante aqueles anos [após a Segunda Guerra Mundial]: a predicação tranquila de [Louis] Lavelle e [René] Le Senne, a obscura clareza que se desprendia de Sartre, a infalibilidade dogmática de um [Georges] Politzer ou de um [Henri] Lefèbvre». E o pensador confessaria, resignado com o facto de as descobertas que pudesse fazer não figurarem nos «guides bleus da cultura»: «Não ter nenhum parentesco filosófico com os nossos amigos políticos, nem nenhuma conivência política com filósofos que talvez partilhem do nosso ideal filosófico, é um triste destino. Mas é o meu destino.»
Antigos discípulos e actuais estudiosos – aliás como o próprio Jankélévitch – apostaram no futuro da sua obra: ele era (é) «um filósofo para o século XXI», não obstante ou porque relegado para a «inactualidade» durante o século XX. É costume dizer que alguns têm razão antes de tempo, e Jankélévitch seria um dos raros que poderiam sem discussão ser incluído em tal grupo; de facto, a avaliar pelo quase-silêncio de muitas e variadas «sumidades» a respeito de obras tão inovadoras como o «Tratado das Virtudes», «Filosofia Primeira» ou «A Morte» – haveria, pelo menos, uma dezena da sua autoria a mencionar – ainda não teria chegado o tempo de o filósofo ser entendido. Restaria esperar, então, que medíocres académicos de todo o mundo, unidos, despertassem do seu bovino «sono dogmático»...
Era apologista da indagação, «inimigo» declarado da fixidez de todas as certezas: «A vocação da filosofia não é oferecer-nos um molho de chaves que abrirão todas as fechaduras; ela é interrogativa e a resposta é muitas vezes a própria interrogação.» Isto nada tinha de novo, o difícil seria levar a cabo – e ele levaria – as consequências de tal asserção, que constitui uma quase heróica opção pelo desassossego e um incitamento à proscrição de cómodas «modorras» à sombra de quaisquer «definitivos» sistemas filosóficos. Como dizia o seu Mestre, Bergson, «o amador em filosofia é aquele que aceita tal-qualmente os termos de um problema usual, o crê definitivamente equacionado e se limita a escolher aparentes soluções desse problema que necessariamente existem antes da sua escolha».
Não aceitava a hipocrisia dos que não fazem o que dizem que deve ser feito: «Só conta o exemplo que o filósofo dá pela sua vida e pelos seus actos.» Ou seja: em plena Resistência ao nazismo – mas será que o filósofo não se encontra sempre na resistência a uma situação ou a uma ideia, quanto mais não seja a pretensas «verdades» que ninguém ousa contestar? – pouco importava já meditar, dizer, escrever; urgia, sim, (re)agir, enfrentar a barbárie, socorrer, caso possível, as suas vítimas, se necessário ao preço da vida. Jankélévitch era coerente, exigia a outros intelectuais que também o fossem, que pusessem a caneta de lado – e que, como ele, combatessem.
Procurou lançar as bases para uma «ética da Resistência», válida para si e para os seus contemporâneos, decerto, mas também para o futuro: «A indignação moral é o único motor graças ao qual passamos da verificação conceptual à efectividade, e do espectáculo platónico da desigualdade à recusa insurreccional do escândalo.» (…) «Há coisas que nunca devemos aceitar, em nenhum caso, sob nenhuma forma, em nenhuma circunstância.» (…) Foi o que compreenderam os Resistentes quando fizeram o gesto louco de dizer não aos nazis.» (…) «Os homens livres, à semelhança dos homens generosos, libertam os homens não pelo que dizem – mesmo os conferencistas – nem pelo que escrevem – como os homens de letras – mas pelo que fazem.» E zurzia os «cavaleiros do compromisso verbal», a quem apontava como sua antítese o poeta, romancista e crítico de artes plásticas Jean Cassou, encarcerado pelos nazis na prisão de Furgole, em Toulouse.
Assumiu uma posição intransigente, mas racionalmente justificada, quanto ao perdão dos responsáveis por Auschwitz: «Cada um é livre de perdoar as ofensas que pessoalmente recebeu, se achar bem. Mas as sofridas por outros, com que direito as perdoaria?» (…) «Em que qualidade podem os sobreviventes perdoar em lugar das vítimas ou em nome dos que escaparam, dos seus parentes, da sua família? Não, não é a nós que nos compete perdoar em vez das crianças que essas bestas se divertiram a supliciar. Seria necessário que fossem as próprias crianças a perdoar.»
«Présence de Vladimir Jankélévitch – Le Charme et l’Occasion», direcção de Françoise Schwab, Beauchesne, 2010, 465 páginas