A metamorfose de Thomas Mann
António Rego Chaves
O título, um tanto surpreendente, desta obra do holandês Rob Riemen, director do Instituto Nexus, é explicado pelo autor nos seguintes termos: «Thomas Mann leu Goethe durante toda a vida. Nos seus últimos anos reuniu os ensaios que escrevera acerca dos livros que se tinham tornado seus amigos, dos mestres que se tinham tornado seus contemporâneos: Schopenhauer, Tolstoi, Fontane, Lessing, Cervantes, Freud e, acima de todos, Goethe. O título dessa colectânea é: ‘Nobreza de Espírito: Dezasseis Ensaios sobre o Problema da Humanidade’. O ano da publicação, 1945. Dificilmente um título poderia ser tão amargo. Desde então mal ouvimos falar, ou ler, acerca da nobreza de espírito. Tornou-se inconveniente falar acerca da nobreza de espírito e o próprio ideal tem sido esquecido.»
Thomas Mann (1875-1954) surge neste texto, a par de Sócrates, Espinosa ou Goethe, como um insigne representante dos valores da liberdade e da democracia. Rob Riemen recorda, no entanto, que o escritor, ao receber da Universidade de Bona um doutoramento honoris causa, em 1919, afirmara não ser «um erudito nem um professor, antes um sonhador e um céptico, tentando salvar e justificar a própria vida, não se imaginando capaz de ensinar algo para melhorar as pessoas ou convencê-las seja do que for».
O seu passado, porém, desmentia já este humilde auto-retrato. De facto, era então responsável, desde 1901, por «Os Buddenbrook», obra que o convertera, aos 26 anos, num autor admirado na Alemanha e no resto da Europa. Fizera publicar, também, o célebre conto «A Morte em Veneza» (1912) e pertencera, ainda que por poucos meses, à Comissão de Censura de livros de Munique, que abandonara com a seguinte declaração: «Não quero que ninguém diga que me pus do lado da polícia e contra o espírito e a liberdade.» «Last but not least»: desde 1914, após o início da Primeira Guerra Mundial, interviera abertamente em defesa do imperialismo germânico, associando-se assim à maior parte dos intelectuais do seu país.
Ao contrário de Romain Rolland, que, num texto exemplar, «Au dessus de la mêlée», se erguera contra o militarismo prussiano, «o inimigo da liberdade europeia, o inimigo da civilização do Ocidente, o inimigo da própria Alemanha», Thomas Mann, opondo a Kultur (alemã) à Zivilisation (latina), alimentara o belicismo no Velho Continente. No artigo «Pensamentos na Guerra», escrito «para pôr pelo menos a cabeça ao serviço da causa alemã», no ensaio «Frederico e a Grande Coligação de 1756», onde justificava indirectamente a invasão da Bélgica neutral pelas tropas de Berlim e sustentava que «o rei não está submetido ao direito, na medida em que o direito é uma convenção, o juízo da maioria», até às «Considerações de um Apolítico» (cuja recensão já inserimos neste lugar), a mensagem era idêntica: apoio às pretensões do imperialismo teutónico.
Escreve Rob Riemen, tentando justificar Thomas Mann: «Está convencido de que a Primeira Guerra Mundial é um conflito que não tem a ver com o poder, mas com as ideias espirituais. Acredita que a ‘cultura alemã’ está ameaçada. Esse legado valoriza o crescimento pessoal por meio da educação liberal mais do que do compromisso social, e vê a liberdade não tanto como liberdade política mas como liberdade interior e espiritual. A felicidade humana é uma questão metafísica e religiosa, não um problema social: a ética pessoal é mais importante do que as instituições sociais.»
O mínimo que se pode dizer é que, quando teceu as «Considerações de um Apolítico» o seu autor era «cego» para as realidades políticas; mas algo mais deve ser anotado: que era então um reaccionário antidemocrata, integrado na burguesia bem-pensante de Munique, tendo-se atrevido, em 1921, quando a Alemanha do pós-guerra enfrentava uma catastrófica crise social, a produzir esta pasmosa confissão de autismo (pasmosa mesmo vinda de quem vinha, um pretenso «apolítico»): «Não conheço a fome, não a conheci nunca…; estou agradecido ao sistema social capitalista.»
Concede o ensaísta: «Comete o erro quase clássico de equiparar conservadorismo cultural (preservar uma herança cultural) ao político (manter a ordem social existente). Equipará-los significa que o Império alemão é melhor do que as democracias ocidentais. Conclui que a política o distrai do seu trabalho artístico e pode ser ignorada enquanto for deixado em paz. Idealmente o mundo do século XIX devia continuar a existir.»
Klaus, o filho mais velho de Thomas Mann, autor de uma inolvidável autobiografia («Der Wendepunkt», «Le Tournant» na edição francesa), que pediu para ser integrado nas forças militares dos Estados Unidos quando estes entraram na Segunda Guerra Mundial e lutaria em Itália contra as tropas de Hitler, sintetizaria assim a sua opinião: «A mente apolítica, quando se politizou, imaginou que a sua primeira tarefa era defender a sombria grandeza da cultura germânica contra o optimismo militante da civilização ocidental. Confundiu a arrogância temerária dos imperialistas prussianos com os esplendores de Dürer, Bach e Schopenhauer.»
Em 1922, inicia-se a grande viragem política de Thomas Mann: lerá Walt Whitman, aderirá à jovem democracia de Weimar numa conferência que intitula «Sobre a República Alemã», inserirá n’ «A Montanha Mágica» os fascinantes diálogos entre o iluminista Settembrini e o pré-fascista Naphta (em que muitos reconheceriam traços de Lukács, o seu melhor crítico), atacará o nazismo em ascensão, será perseguido, forçado ao exílio, privado de cidadania. Anos mais tarde, em 1952, abandona os EUA e instala-se na Suíça, decepcionado com a política de Washington e com a repugnante campanha anticomunista do senador McCarthy. Fora acusado pelo FBI de «antifascismo prematuro», isto é, de resistência ao fascismo antes de Washington ter declarado guerra a Berlim, em 1941.Tudo nos leva a crer, pois, que se metamorfoseara em eminente figura da nobreza de espírito…
Rob Riemen, «Nobreza de Espírito – Um Ideal Esquecido», Bizâncio, 2011, 158 páginas