António Rego Chaves
Haverá uma mitificação do Marquês de Pombal? Sabemos que sim, sabemos mesmo que existem dois mitos do Marquês de Pombal, o primeiro propagado pelos seus panegiristas, o segundo posto a circular pelos seus detractores. Mas será que não haverá também um mito do mito do marquês de Pombal, ou seja, uma tentativa de nos fazer crer que não é possível alcançar a verdade histórica acerca de Carvalho e Melo? A ajuizar por este ensaio de José Eduardo Franco e Annabela Rita, dir-se-ia que sim: que todas as interpretações da governação do ministro de D. José I são ideológicas, seja porque devidas à Maçonaria, seja porque importadas da «Viradeira» do reinado de sua filha, D. Maria I. Sucede, porém, que entre os «amigos» de Sebastião José não se contaram nem contam apenas pedreiros-livres ou seus próximos, nem entre os seus «inimigos» se contaram nem contam apenas simpatizantes dos jesuítas ou nostálgicos dos Aveiros, dos Távoras e dos Alornas. Como salienta Zília Osório de Castro no prefácio da obra, um fosso separa o autêntico historiador do forjador de mitos. Daí que nos seja lícito perguntar se este ensaio, cujos autores, aliás, parecem esquecer que D. José I esteve longe de ser um abúlico «pau-mandado» – e, como D. João V, caricato «rei de opereta» –, nomeadamente por ocasião do processo dos autores da tentativa de regicídio de que foi vítima, se situará mais do lado da investigação rigorosa do passado ou no âmbito da exposição de serôdios sonhos dogmáticos.
Detenhamo-nos apenas num exemplo: entre o filopombalismo de um Latino Coelho e o antipombalismo de um Camilo Castelo Branco, entre o mito luminoso e o mito negro, será possível, traçando uma mágica bissectriz, encontrar a verdade? Se sim, em que consiste essa verdade? Se não, porquê renunciar à sua descoberta, tanto quanto possível sem entrar na «guerrilha» entre «amigos» e «inimigos» de Carvalho e Melo?
Afirma José Eduardo Franco que Pombal «foi mitificado e usado como bandeira e símbolo dos ideais revolucionários que, ao longo do século XIX e das primeiras décadas do século XX, os movimentos laicos, anticlericais e antilegitimistas quiseram implantar». E espanta-se. Espanta-se porque, não sendo Carvalho e Melo um percursor da Revolução Francesa, nem paladino dos Direitos Humanos, dos valores liberais, da liberdade de opinião e de consciência ou da Democracia, foi utilizado como bandeira pelo Liberalismo, pela Maçonaria, pela República. Mas, logo a seguir, transcreve Reis Torgal, que, em meia dúzia de linhas, desfaz, sem margem para dúvidas, este pretenso mistério, ao lembrar que o Marquês «significou a viragem decisiva do absolutismo, que deixa de ser condicionado dominantemente pela velha nobreza ‘senhorial’ e pelo clero ultramontano para ser, em termos políticos, a afirmação de uma burguesia intelectual e mercantil, de um novo clero e de uma nova nobreza de Estado». Não fica claro que havia motivos de sobra para que liberais, maçãos e republicanos honrassem a memória do estadista que lograra arredar dois dos grandes estorvos que impediam a modernização de Portugal? Ou concebe-se que o Liberalismo tenha surgido como que por milagre, «queimando» a etapa josefino-pombalina do «Despotismo Esclarecido»?
Ao situar – aliás na esteira de Camilo – «o grande momento da mitificação do Marquês de Pombal» em 1882, por ocasião do centenário da sua morte, José Eduardo Franco reitera – ainda com Camilo – que o grande paradoxo do liberalismo foi precisamente o mito luminoso então gerado em torno do ministro de D. José I. Mas como poderiam os liberais dos fins do século XIX encarar sem simpatia o não-liberal que afastara das rédeas do Poder e do ensino um clero obscurantista, que abrira o país às Luzes, que domara uma nobreza parasitária e incapaz de participar no progresso económico, científico e cultural de Portugal – votando-o a um atraso de décadas em relação à Europa –, que dialogara de igual para igual com o «colonialismo» britânico?
Acresce que a coerência do Secretário de Estado do Reino na definição da política externa (tenaz defesa da independência em relação à Espanha e, portanto, recusa de adesão ao Pacto de Família dos Bourbons – envolvendo o eixo Paris-Madrid – mesmo recorrendo à «aliança» com a Inglaterra); a pronta e modelar reconstrução de Lisboa após o terramoto de 1755; a sua actuação no campo económico (integração plena no mercantilismo europeu, criação da Junta do Comércio, formação de companhias monopolistas, nomeadamente no Alto Douro, no Algarve e no Brasil, organização da Superintendência das Fábricas e Lanifícios, defesa da propriedade agrícola e da sua eficiente valorização); a reforma da instrução (criação do Colégio Real dos Nobres, generalização dos estudos menores, imposição do Subsídio Literário, modernização científica e pedagógica da bafienta Universidade de Coimbra) – explicam à saciedade os fundamentos da seguinte firme asserção de Veríssimo Serrão: «Nenhum estadista português, como o Marquês de Pombal, terá obrado tanto pelo seu País, buscando criar-lhe uma nova mentalidade e mais sólidas estruturas de actuação.» E adverte o infatigável historiador: «Pombal foi o produto do tempo histórico que antecede o liberalismo, não se lhe podendo exigir o mesmo comportamento de quem, meio século depois, tivesse jurado os direitos do homem e do cidadão. (…) «No seu ideário, o indivíduo apagava-se perante o Estado, na medida em que o pensamento régio tinha apenas em vista a felicidade dos súbditos.» (…) «Ver ainda hoje a sua pessoa e obra à luz do humanitarismo liberal é ignorar os quadros de pensamento em que o seu espírito se formou e moveu.» (…) «A história não pode ignorar quanto o génio de Pombal modelou um país novo entre 1750 e 1777, diferente pelas estruturas políticas e pela mentalidade do seu povo. Fazer intervir factores éticos no jogo político do tempo, criticando Sebastião de Carvalho pela violência do seu governo, é ignorar que tal visão, de marca profundamente liberal, não tem cabimento à luz do século XVIII.»
José Eduardo Franco e Annabela Rita, «O Mito do Marquês de Pombal – A mitificação do Primeiro-Ministro de D. José pela Maçonaria», Prefácio, 2004, 117 páginas