António Rego Chaves
Os jesuítas, sabe-se, têm uma longa história em Portugal. De 1540 até 1759, tudo ou quase tudo lhes correu de feição. Foi então que o Marquês de Pombal os expulsou, sob a acusação de haverem «prosseguido a usurpação de todo o Brasil» e de serem cúmplices do atentado contra D. José I. Nova vassourada em 1834, terminado o reinado de D. Miguel, por ordem de Joaquim António de Aguiar, então ministro da Justiça. Mais uma vez regressaram e mais uma vez seriam desterrados, após a proclamação da República, em 1910. Entretanto haviam fundado, em 1902, a revista Brotéria, assim chamada em homenagem ao insigne naturalista Avelar Brotero. Estas informações devemo-las ao «Dicionário de História de Portugal» dirigido por Joel Serrão. Se procurarmos no recente suplemento coordenado por António Barreto e Maria Filomena Mónica alguma sequência, verificamos que quase nada se diz sobre a Brotéria, a não ser que ela continuou a existir… Convenhamos, não é de aceitar.
Não é de aceitar, ainda que uma entrada consagrada a Manuel Antunes nos diga que o grande especialista de Cultura Clássica «colaborou assiduamente, durante mais de 40 anos, na Brotéria, de que foi director». E basta, quanto à sua acção na referida publicação? Decerto que não. Se hoje percorrermos a oportuna obra consagrada ao centenário da revista, verificamos quanto nos faltava saber para ter uma razoável ideia de conjunto acerca do trabalho desenvolvido por múltiplas personalidades, durante um século, numa das mais antigas instituições culturais nadas e criadas em Portugal.
Entendamo-nos desde já: para a geração a que pertenço, a Brotéria identificava-se com o regime salazarista e com a visão do cristianismo corporizada pelo então Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira. Foi assim antes do Vaticano II, em parte durante o Vaticano II e até por vezes depois do Vaticano II – e isto apesar de todos os indiscutíveis «golpes de asa» tão característicos do padre Manuel Antunes.
Leia-se com atenção um dos muitos artigos que compõem este precioso «dossier», assinado por Sara Marques Pereira, com o título «A Brotéria – Revista Contemporânea de Cultura no Estado Novo (1933-1974)». Lá se poderá verificar que as posições assumidas pela revista «irão de um inicial, e mesmo incondicional, apoio ao regime, até um lento afastamento crítico que se começará a fazer sentir no pós-guerra», tornando-se «muito nítido» já sob a direcção de Manuel Antunes, entre 1965 e 1982. Durante dezenas de anos, a publicação «será um verdadeiro espaço de propaganda do Estado Corporativo, salientando as suas enormes vantagens, a ordem, estabilidade e progresso, bem como o elogio à liderança forte e ao nacionalismo tradicionalista». Isto não significava, porém, que a Companhia de Jesus se considerasse inteiramente satisfeita, pois havia quem afirmasse nas páginas da «Brotéria», em 1935: «O estado actual português afigura-se-nos um pagão muito honesto, vivendo quanto possível conforme os ditames da razão e optimamente disposto para ser baptizado, após uma iniciação nas verdades da Fé.» (Mariano Pinho, «A Propósito do Corporativismo»). No entanto, com a saída de António Leite da direcção da revista e a sua substituição por Manuel Antunes, em 1965, mudam-se algumas vontades, agora arejadas e estimuladas pelo Vaticano II. Nuno Estêvão põe os pontos nos is, chamando a atenção, no ensaio «A Brotéria e a Renovação Conciliar», para o facto de se ter verificado, na ocasião, «uma profunda renovação da linha editorial» da publicação, a mais indiscutível das quais consistiu na colaboração de um vasto conjunto de autores leigos como Adérito Sedas Nunes, Miller Guerra, Manuela Silva, Francisco Pereira de Moura, Mário Murteira, Rogério Martins, Nuno de Bragança, Xavier Pintado ou Nuno Teotónio Pereira. «Manuel Antunes realçava a exigência de “abertura” que o Vaticano II tinha consagrado e que deveria ser o resultado da convergência da justa liberdade de pesquisa, de pensamento e de proposição (…), da razão especulativa, da razão histórica e da razão hermenêutica».
Para o novo director, até algumas «precipitações revolucionárias» – nas quais, aliás, nunca incorreu – eram compreensíveis no âmbito do «aggiornamento» iniciado por João XXIII e que fora um dos primeiros a intuir em Portugal, precisamente nas páginas da Brotéria, em Abril de 1958, ainda em pleno pontificado de Pio XII e influenciado pelo pensamento do grande teólogo Karl Rahner. Estranho a todas as tácticas e estratégias para a conquista de grandes ou pequenos prestígios, defendia serenamente, nos tempos do salazarismo, com sua frágil silhueta, seus gestos delicados e sua fina voz, a liberdade devida ao eminente intelectual que era, intensamente livre apesar de espartilhado por instituições tão atreitas à rigidez de opiniões quanto a Igreja Católica, a Companhia de Jesus e a Faculdade de Letras de Lisboa.
Integram também este volume um prefácio de Eduardo Lourenço, uma introdução de Hermínio Rico, dezenas de depoimentos, uma «História da Revista Brotéria» assinada por José Eduardo Franco, biografias de todos os directores da publicação e alguns estudos bem esclarecedores das linhas editoriais, por vezes contraditórias, adoptadas durante cem anos. Relevem-se, além dos já mencionados, os consagrados às tomadas de posição da Brotéria em relação ao pensamento filosófico português (José Esteves Pereira), à vida literária (João Bigotte Chorão), à difusão da ciência (Marta Mendonça), ao humanismo greco-latino (Arnaldo Espírito Santo), ao «milagre» de Fátima (José Barreto), à doutrinação estética (José Carlos Pereira), à genética (Miguel Mota) e ao binómio ciência-ética (José Luís Garcia e Helena Mateus Jerónimo). De louvar que, em regra, não prevaleça o panegírico sem matizes, embora tal distorção seja evidente em demasiados depoimentos, biografias de directores e artigos. O balanço final é, porém, em nossa opinião, globalmente positivo em matéria de probidade intelectual e rigor histórico.
«Fé, Ciência, Cultura: Brotéria – 100 anos», Hermínio Rico e José Eduardo Franco (coordenadores), Gradiva, Dezembro de 2003, 561 páginas